Óculos
Alô! Oi querida, tudo bem? Soube do absurdo. Esse seu cunhado é um idiota! Saiu com a maior ignorância com o pessoal que estava no churrasco por causa de uma besteira. Nem sei direito o que estavam falando mas ele alteou a voz e saiu reclamando. Pior que na hora de dividir ele já tinha ido embora. Muito esperto. A única coisa que contribuiu foi com aquela cerveja ruim que ele levou. Tenho pena da mulher dele. Se bem que ela também não é grande coisa não. Ainda bem que seu marido não é igual a ele. Hein? É mesmo? Mentira... E vc fez o que? (...)
Terça-feira de manhã. Consulta com o oftalmologista.
Comecei a usar óculos nos anos 80. Provavelmente já tinha problemas na vista quando criança, mas a condição social era impeditiva para cuidar disso. O lado positivo é que me livrei do clássico apelido "quatro olhos", tão comum nas escolas públicas da época. Mas é fato que posso usar o depoimento do Herbert Viana: eu não nasci de óculos / eu não era assim. Até tentei usar lentes de contato, não me adaptei. Como só tiro os óculos para tomar banho e dormir, se me vejo no espelho sem eles não me reconheço. Tipo Clark Kent, persona civil introspectiva do Super-Homem, cujo único disfarce - que funciona - é o par de óculos. Sem querer me comparar com o herói, que fique bem claro. A não ser que esteja sob efeito da Kriptonita, única substância do universo que o deixa parecendo um fracote peso pena. Se bem que nem isso. Minha circunferência abdominal da atualidade não permitiria ser classificado nessa categoria leve.
Nos últimos anos a periodicidade da ida ao especialista diminuiu bastante. O médico disse ser normal que, depois dos 60, passe a existir uma estabilidade na deficiência. O que seria uma das poucas coisas boas nesse período da vida quando os problemas de saúde ou pioram ou passam a existir. Controlar o já citado abdômen, por exemplo. Outro lado bom de não ter que ficar trocando de óculos todo ano, como já foi rotina no meu caso, é a economia em tempos recessivos (falo no caso da minha conta bancária, não da economia como um todo). É que minhas lentes tem de ser especiais, multifocais que corrijam miopia, hipermetropia, presbiopia, astigmatismo, fotofobia, etc etc. Essas lentes sempre foram caras pois só existiam três empresas que as fabricavam: a japonesa Hoyalux, a alemã Zeiss e a americana Varilux. Hoje essas jã são feitas no Brasil e entraram outras nacionais no mercado, o que aliviou um pouco, além das inovações tecnológicas que trouxeram mais conforto visual. O mesmo das novas levíssimas armações, feitas com materiais espaciais (tipo "travesseiro da Nasa"). Mas sempre tem um porém. Esses avanços tem seu preço. E não é barato. Aí chega um ponto que parece que os óculos vem com câmbio automático, freio ABS, ar condicionado digital, air bag, sistema de som high definition, teto solar, etc.
Vislumbrando esses gastos e como não estava sentindo nenhum incomodo fui jogando o retorno ao especialista para frente. Ocorre que, depois de alguns anos, eventualmente as lentes começam a passar por um processo chamado craquelamento que é o surgimento de micro fissuras e trincas que dão um aspecto de lente manchada que não sai mesmo lavando. Para mim isso é estratégia de obsolescência programada. E somos reféns disso. Foi o que estava acontecendo com os dois pares de óculos que havia feito da última vez, provavelmente há mais de três anos. Enfim, marquei.
Na sala de espera deviam ter umas 12 pessoas. Perguntei para a recepcionista se eram todas para o mesmo médico que eu. Não eram, ainda bem. Independente disso sabia que ia esperar por, pelo menos, 30 a 40 minutos. Até alguns anos atrás era normal ter um porta-revistas para os pacientes passarem o tempo lendo. Hoje não mais. Todos vão com os seus celulares. E tem a TV, que estava ligada na Ana Maria Braga. Sem som. O que é bom. Aliás me pergunto se ainda existem revistas. Imagine uma publicação semanal que traga as "últimas notícias". Vai parecer que são do século passado. A internet transmite os fatos em tempo real. As vezes parece que até antes. O avião faz um pouso de emergência às 10 horas. Às 9:45 h a notícia parece que já está lá. Não sei não. Esta semana tocaram fogo em uma loja no shopping. A dona, correndo do fogo, fez uma live no Insta, no meio da fumaça. A população ficou sabendo antes dos bombeiros. A não ser que eles estivessem olhando o celular no quartel. O que é bem provável, pois chegaram rápido. Então já sabem, em caso de emergência, façam uma live!
Sentei e saquei o Smarthphone. Vi as notícias do dia no G1. Depois fui olhar o Insta. Depois o WhatsApp Business. Depois o WhatsApp social. Como esqueci o fone bluetooth não abri o Youtube nem o Spotify, pena. O tempo passa. Paro e levanto a cabeça. Dou de cara com a Ana Maria falando não sei o quê. Olho para o lado e vejo um pré adolescente lendo um livro! Hein? Como assim? Apaguei a tela do celular e comecei a tentar ver qual livro era. Depois de um tempo descobri que se tratava de um exemplar de "O Mundo Perdido", de Michael Crichton, sequência de "Jurassic Park". Mas porque ele não estava com celular? Controle dos pais? Acho que não. A mãe dele estava. Aquele fato alvissareiro pesou na consciência. Percebi que definitivamente não estava ligado naquele ambiente, no momento.
Resolvi então passar a existir ali, na sala de espera. Tirando o jovem leitor, muitos outros pacientes - a maioria - estavam ligados no celular, não dando a mínima para a existência fora da tela, como eu estava até então. Um senhor ao meu lado comenta sobre o calor. Um jovem casal com sérios problemas de visão chega. O rapaz senta, a moça com sua bengala começa a se dirigir a recepção com certa dificuldade. Penso em ajudá-la mas vejo que ela consegue se sair bem sozinha. Uma senhorinha solitária de cabelos brancos olha a TV muda sem esboçar reação. Um dos atendentes anda pra lá e prá cá colocando colírio em alguns. A moça sentada próximo atende o celular e divide sua vida com todos na sala ao fazer os comentários que narro parcialmente no início desta crônica. A vida pulsa, mesmo naqueles momentos perdidos de espera.
Finalmente sou chamado e revejo meu oftalmologista depois de alguns anos. Ele está bem, graças a Deus, depois de um sério acidente que sofreu. Me fala da neta, uma figurinha adorável de menos de três anos que é também uma lutadora desde tão cedo.
Saio dali me despedindo de todos na sala de espera. A recepcionista respondeu. No térreo do prédio entro em uma das quatro óticas ali estabelecidas para encomendar os novos óculos. Me convencem a levar dois pelo preço de um e ainda ganho "de presente" outro de sol com o mesmo grau. Três pares. Em 12 vezes sem juros. Não sei não. Acho que é armadilha, mas o gerente foi bem convincente com seus incríveis "descontos". Mas, como realmente é indicado que se tenha dois pares com o mesmo grau, tudo bem.
Pelo menos naquele dia não mexi mais no celular. E consigo me lembrar dos detalhes daquela manhã. O suficiente para escrever uma crônica mais ou menos neste sábado levemente nublado, próximo do mar.
Oi Marcos. Eu uso óculos desde criança. Era daqueles fundo de garrafa. Meio caolho. Agora melhorou muito com as lentes de policarbonato. Muito bons seus textos. Você consegue transformar qualquer coisa em uma história bem contada.
ResponderExcluirEu me lembro desses óculos grossos verdes. Eram pesados e esteticamente feios. Ainda bem que a tecnologia evoluiu. Obrigado pelo comentário!
ExcluirEi fiz cirurgia e deixei de usar óculos. Valeu a pena.
ResponderExcluirQue bom! No meu caso a cirurgia não resolveria.
ExcluirQue texto maravilhoso de ler! Amei como sempre 💙
ResponderExcluirObrigado minha querida! 💚
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