Minicontos Modernos (1)
Um dos hábitos de sua infância era deitar na varanda e ficar observando as figuras que as nuvens formavam. Na vida adulta nunca mais fizera isso. Agora, olhando o céu de outono, salpicado de algodão sob um fundo azul celeste, se perguntou se sua imaginação seria capaz de vislumbrar tantas imagens como nos tempos juvenis. Girou a visão por todo o céu a partir de sua ampla janela da sala. Parou em um ponto em que as nuvens eram mais espessas, lembrava-se que aquelas eram as ideais, as tais Cumulonimbus. O tempo passou e nada. Começou a achar que um dos preços a pagar por conta do passar do tempo era a derrocada da criatividade visual, da fantasia. Não se deu por vencido. O Notebook estava ali perto. Digitou no Google: "ver imagens em nuvens". Retorno da IA: "O fenômeno de ver imagens em nuvens, ou em qualquer outro estímulo aleatório, é conhecido como pareidolia. É uma tendência natural do cérebro humano de procurar e reconhecer padrões significativos em estímulos visuais ambíguos, como nuvens, manchas ou objetos inanimados". Ok. Retornou para janela e fez mais uma tentativa. Desta vez algo começou a tomar forma nos lentos movimentos. Era uma animal. Esperou. Esperou. Começou a ficar mais nítido. Um rosto largo com uma grande juba. Era um leão! Claramente. Seus olhos marejaram. Lembrou-se do nome adotado pelo novo Papa, Leão XIV. Seria uma mensagem sublime de amor e esperança vinda dos céus? Percebeu que ao lado, algumas nuvens menores pareciam se entrelaçar formando também um conjunto de figuras que pareciam números em algarismos romanos. Então poderia ser mesmo algo relacionado ao Sumo Pontífice! No entanto o número que parecia se formar não era XIV e sim XXV. Como assim 25 e não 14? O que há por trás deste código? Dá uma olhada no seu relógio Casio G-Shock (ele ainda usava Casio) e se dá conta que é 30 maio. Então tudo ficou bem claro. Era sim uma mensagem. Mas não a que ele desejava. Não do Papa. O prazo final da declaração do Imposto de Renda é hoje e ele ainda não havia feito nada. Sabia que ia ter de pagar e estava procrastinando. Sua revolta era o fato de pagar uma quantia alta todo mês, descontado direto no contracheque (27,5%), e agora, no fechamento, ter de pagar ainda mais. Olha outra vez para o céu e lá está o Leão da Receita Federal olhando para ele. Na frente, o fatídico XXV e, em nuvens menores, XXIV. 2025, ano base 2024.
O Homem Que Falava Sozinho
Era um problema. Seus pensamentos fervilhavam e em determinados momentos saltavam de sua boca. Criava histórias mas elas só ganhavam vida se ele verbalizasse. Caso contrário se esquecia delas, como uma amnésia seletiva. A questão é que esses casos e lembranças vinham repentinamente, sem aviso prévio. Já havia tentado sempre estar com caneta e papel mas quase nunca era possível escrever. No trânsito, no trabalho, na academia. Só tinha um jeito, falar sozinho. Meio que conversando consigo mesmo. Mas como superar o constrangimento que isso causava? Quem fala sozinho o tempo todo ou não bate bem da cabeça ou está alguns graus alcoólicos acima da média. Eventualmente os dois. O jeito foi se calar, calando assim a sua veia de escritor amador que, diga-se de passagem, nunca foi grande coisa. E segue a vida. Como não focava mais em seus contos imaginários, passou a reparar mais no que estava a sua volta. E foi em uma determinada tarde que tudo começou. Passou por uma bela jovem e ela estava conversando. Com ninguém. Foi a primeira vez mas não seria a última. A cada dia via mais de uma pessoa falando ao vento, fazendo gestos para o ar, dialogando com o vazio. Então não era só ele? E essas pessoas não tinham medo de parecer ridículas? Como era um analógico de carteirinha só depois de muito tempo é que veio a descobrir um milagre chamado Bluetooth. Incrível! Aquelas pessoas na verdade estavam falando ao celular no bolso ou na bolsa, com um pequeno fone sem fio nos ouvidos. Estava decretada sua salvação para todo o sempre. Amém. Comprou os benditos aparelhinhos, não conectou a nada e saiu conversando sozinho, numa boa. Ninguém reparava. Mas tal evento teve um efeito colateral em sua vida. Começou a se interessar pelo que as pessoas falavam. Saber dos problemas alheios poderia servir como inspiração para as suas histórias. A bem da verdade, contos e crônicas que - como ressaltado anteriormente - ele nunca conseguiu colocar em formato de textos inteligíveis. Só existiam mesmo na sua mente, como ideias soltas. E lá estava ele, na pequena praça, procurando alguém que estivesse em ligação bluetooniana. Viu uma mulher de meia idade sentada no banco de madeira, sob a sombra de uma figueira. Fazia gestos desarticulados, como se estivesse discutindo. Sentou-se ao lado dela, com o fone obviamente desligado e em apenas um ouvido. Eventualmente falava alguma coisa para disfarçar, como se estivesse em uma ligação também. Em pouco tempo concluiu que não havia ninguém do outro lado da linha. Não era diálogo. Ela também falava sozinha! Foi amor a primeira audição. Uma alma gêmea. Estranhou o fato dela falar muitos palavrões, já que ele não era muito desse linguajar. Mas isso era um detalhe perdoável. Usou todas as suas armas para conquistá-la, pois não era de falar com estranhos, só com ela mesmo. Conseguiu seu intento. Se casaram em uma loja de um conhecido em comum, especializada em capinhas de celular e artigos eletrônicos chineses. Fizeram muitos planos. Se o primeiro filho fosse menino, se chamaria Bluetooth. Se menina, Alexa. Em ambos casos, se no futuro se identificasse com alguma orientação constante no termo LGBTQIAPN+, poderia adotar o nome Amazon, numa boa.
Criaram o hábito de todo sábado ir na pracinha em que se conheceram. Muito romântico isso. Sentavam cada um em um banco, o mais distante possível um do outro. E ficavam conversando em ligação com fone Bluetooth. Falavam muito sobre as novelas que acompanhavam.
- Odeio Maria de Fátima, aquela piranha que tenta dar golpe na própria mãe!
- Mas meu amor, considere que ela é uma garota pobre que tenta subir na vida de maneira errada, mas é apenas um ser humano cheio de falhas.
- Não me venha com essa sua filosofia barata, de botequim barato, de escritor frustrado. Deve estar é de olho nas coxas da atriz. Vocês homens são todos iguais.
- Que isso... vejo de uma forma diferente essas relações com dinheiro. É o mesmo caso da Odete Roitman.
- Vai tentar defender aquela meretriz rica também? Ora vá pra casa!
- Mas viemos de lá agora. Que casa?
- Casa do caralho!
E foram felizes para sempre.
Postado por Marcos Oliveira em 30/05/2025
Kkkkkkk não parei de rir até agora! Já vi que vc é fera em plot twist. Muito criativo. Já estou esperando outras histórias deste mundo moderno.
ResponderExcluirQue bom que gostou. Contos não são minha praia mas estou começando a me aventurar. Acredito que plots twist são importantes em contos curtos, pelo elemento surpresa. Mas não são obrigatórios. E as vezes bem difíceis de viabilizar. Valeu!
ExcluirMarquinho, adorei. Vc é muito bom em crônicas que são muito agradáveis de ler. Mas agora se revelou um contista muito bem humorado. Agora vai ter de fazer dois livros, um de crônica e outro de contos.
ResponderExcluirObrigado Alfredo. Fazer dois livros? Rsrs... Tá difícil fazer meio, que dirá dois. Mas vamos tentando. A esperança é a penúltima que morre. A última somos nós mesmos. 😊
ExcluirMe enganou direitinho! Nas duas histórias! Muito bom Marco! Valeu! Abração !
ResponderExcluirRsrs... 😊
ExcluirMuito bom !!!! Finais bem fora da caixinha! Rsrsrs! Valeu Marco! Abração!
ResponderExcluirSurpresas neste tipo de história sempre são interessantes. Fico feliz em ter conseguido te surpreender. Abraço! 😊
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