O Cliente Insuportável

Sei que alguns de vocês profissionalmente tem o privilégio (essa palavra poderia ser entre aspas, se é que me entendem) de lidar diretamente com o público. Clientes do seu trabalho. 

Isso poderia ser um mar de rosas, mas sabemos que não é bem assim. É que tem um percentual - que pode não ser pequeno, diga-se de passagem - que é formado por pessoas chatas. E é fato que o cliente na maioria das vezes não tem razão. Ok, precisamos aturá-los, jogar com a psicologia, controlar nossa ânsia de mandar alguns deles para os quintos dos infernos, o que seria um tormento para o capeta.

O que disse acima é só entre nós, claro. Qualquer coach de Internet vai recomendar o óbvio, que é preciso encantar o cliente, pois dele sobrevive nosso negócio ou nosso emprego e blá, blá, blá... Além disso nós, que também somos clientes, já ficamos inúmeras vezes impacientes. Neste caso sempre temos razão, não é mesmo?

Já escrevi neste espaço algumas impressões sobre determinadas músicas. Foi assim com "Year of the Cat" e "Amigo é pra essas coisas", pra citar só duas. Esta semana ouvi no rádio - fato raro ouvir rádio atualmente - uma nova versão de "Conversa de Botequim", já inúmeras vezes regravada (inclusive por Moreira da Silva e Chico Buarque) desde a original de 1935. Composta pelos geniais Noel Rosa e Vadico, é um relato de um cliente de um botequim, misto de lanchonete, café, bar e restaurante (dependendo do horário) muito comum nas esquinas suburbanas daquela época e até hoje. É provavelmente o personagem mais enjoado de nossa clássica MPB e a vítima nesse caso é o pobre coitado do garçom. 

Ele já começa a canção lançando dúvidas sobre a honestidade do produto do estabelecimento e pedindo pressa: "Seu garçom faça o favor de me trazer depressa uma boa média (café com leite) que não seja requentada". Mal acaba de anotar o pedido, já vem as ordens: "Feche a porta da direita com muito cuidado / Que não estou disposto a ficar exposto ao sol / Vá perguntar ao seu freguês do lado / Qual foi o resultado do futebol".

A letra segue dando ordens e reclamando. Há um trecho curioso onde ele cita um número de telefone e o nome da pessoa: "Telefone ao menos uma vez / Para três quatro, quatro, três, três, três / E ordene ao seu Osório / Que me mande um guarda-chuva / Aqui pro nosso escritório". Fica a curiosidade se o número era verdadeiro, bem como o do vendedor. São poucas as canções que citam telefone ou endereço reais. Uma famosa é a do Vinícius de Moraes, informando o endereço de Tom Jobim nos anos 50, ali em Ipanema, onde foi efetivamente criada o que viria a ser a Bossa Nova: "Rua Nascimento Silva, 107 / E você ensinando pra Elizeth (Cardoso) / As canções de Canção do Amor Demais". Ao que parece o pequeno prédio ainda existe. O citado "Canção do Amor Demais" é o disco que Elizeth iria lançar em 1958, contendo composições de Tom e Vinicius e que contou com o violão de João Gilberto. É nesse disco que aparece pela primeira vez "Chega de Saudade". Esse álbum é considerado um dos marcos iniciais da Bossa Nova.

O ápice da chatice do cliente citado por Noel e Vadico é que ele reclama até quando o garçom age de forma pró ativa: "Se você ficar limpando a mesa / Não me levanto nem pago a despesa". O fato é que ele achou que o mesmo estava querendo que ele liberasse a mesa para outros possíveis fregueses. Acredito mais é que o empregado do estabelecimento estava preocupado com seu bem estar, até para evitar mais reclamações, tipo quanto à limpeza da mesa.

O fato é que essa é uma das criações mais geniais da dupla - letra e melodia se complementando de forma ideal -, pois faz uma crônica dos bares cariocas daqueles tempos e de seu folgados frequentadores, com diversas citações do cotidiano da cidade. Quanto ao insuportável cliente pode ser um daqueles ranzinzas que tem carisma, já velho conhecido do estabelecimento, frequentador assíduo do ambiente que não chega a abalar o humor dos garçons. Bem, pelo menos podemos tentar fazer esta leitura para aliviar nosso sentimento de empatia com o garçom e porque conhecemos alguém assim. Aliás, acho que provavelmente ao longo da minha não tão requintada existência posso ter agido da mesma forma. Não que eu me lembre...

Comentários

  1. Muito boa lembrança dessa música, assim como as suas impressões dela, sempre bem humoradas. Essa canção foi listada pela Rolling Stones em 2009 como uma das 100 melhores da história da MPB. Aparece em 57º lugar.

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    1. Valeu pela informação Ricardo. A canção além do humor que permanece, merece análises sociológicas. Roberto Da Matta, por exemplo, diz que os "faça o favor" espalhados pela letra são estratégias de dar um sentido educado ao pedido, mesmo que ele seja absurdo e abusivo.

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  2. Marcos: Adorei a sua crônica e só para acrescentar, o prédio da Nascimento Silva 107 está do mesmo jeitinho daquela época, com um placa na fachada dizendo que aqui viveu um dos maiores gênios da musica popular brasileira, Tom Jobim.

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    1. Olá Dra. Blanca! Que bom ler seu comentário. Obrigado! Não sabia desse detalhe. Interessante. Bom saber que essa parte histórica está preservada. Quando for possível vou passar lá em frente pra ver. Grande abraço! 😊

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  3. Muito bom meu amigo, excelente crônica, muitos fatos da história da nossa música que eu desconhecia.

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    1. Valeu amigo. Obrigado pela leitura. Nossa MPB é muito rica em boas músicas e boas histórias. Grande abraço!

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