O Fim de Ano e Roberto Carlos: Ainda Estou Aqui!

É impressão minha ou 2024 passou rápido demais? Em uma cena de um dos desenhos "A Era do Gelo" o engraçado esquilo que vive perseguindo uma noz vai parar no centro da terra onde tem uma esfera que controla a estabilidade do planeta. Ao girar acidentalmente essa grande bola, acaba provocando um imenso cataclisma que foi a origem da divisão dos continentes. Fico pensando na possibilidade de algo assim ter acontecido este ano mas, ao invés de terremotos e maremotos, de forma imperceptível fez com que a terra girasse mais rápido. Dias menores, ano menor. 

Óbvio que o que acontece é que temos muitos afazeres, muita informação, muito trânsito, muitas preocupações, muito WhatsApp. A percepção da passagem do tempo fica comprometida. Não é a mesma de alguém dos anos 1960, por exemplo. Cito esse período específico porque eu estive lá, acreditem. A infância era pobre mas tínhamos nossa Árvore de Natal. Saíamos eu, meu pai e meu irmão pela mata próxima procurando um bom galho que tivesse bastante ramificações. Normalmente as que mais se enquadravam neste quesito eram as goiabeiras. Escolhido o galho, cortávamos com um facão, procurando não prejudicar em demasia a frutífera. As folhas eram retiradas e colocado para secar. Dias depois era hora de montar, cobrindo com algodão toda extensão e colocando as bolas e o pisca-pisca de lâmpadas incandescentes coloridas, itens que eram guardados como relíquias ao longo dos anos. Ficava bonita. Todo o processo levava um bom tempo, que corria lentamente. Hoje a árvore vem pronta e o pisca pisca Made in China tem 10 metros, 100 Leds, 6 funções smart, controle remoto, sinal bluetooth, USB, aplicativo no celular e custa R$ 78,90, já com impostos incluídos. Afinal não temos tempo de montar item a item e nem goiabeiras por perto.

E, se fala em Natal, vem junto o Ano Novo e aqueles questionamentos sobre as resoluções do que foi feito este ano bem como as conquistas planejadas. Elas se efetivaram? E ano que vem, como será? Se o tempo foi curto (estou falando de percepção), é quase certo que o percentual de realizações foi aquém do desejado. E isso gera um pouquinho de frustração. Esse seria apenas um item dos gatilhos que especialistas chamam de "depressão de fim de ano" que acomete em maior ou menor grau um determinado número de pessoas. Mesmo com o clima festivo, as confraternizações, as luzes, os presentes, a decoração, o Papai Noel, não são poucos os que sentem um tipo de vazio, inadequação, melancolia. Os motivos seriam diversos. Além do já citado somam-se muitos outros. A falta de pessoas queridas que já se foram, estresse provocado pelo "ritual de reflexão e preparação para o novo ciclo", a "obrigação" de estar feliz com a época mesmo enfrentando os problemas cotidianos, etc. Tudo isso pode ser potencializado nesses tempos de desejos inalcançáveis e perdas irreparáveis. São questões que não se resolvem apenas com aquele pisca pisca chinês de R$ 78,90. Talvez lembrar do aniversariante do dia 25 seja um bom caminho. E que o feriado do dia 1 de janeiro chama-se Confraternização Universal. Mantenhamos as esperanças.

Mas nem só de espinhos sobrevive esta árvore de fim de ano. Afinal temos coisas ótimas como o tradicionalíssimo show de Roberto Carlos na TV. Ou não? É fato que quem acompanhou lá na adolescência esse evento, traz consigo memórias afetivas do "rei", assim acaba sendo uma marcação indelével do período. Esses dias vi uma charge ("forma de expressão em caricatura que faz uma crítica sarcástica sobre algum assunto") onde sua caricatura, já um tanto quanto vintage, cantava "Jesus Cristo, Jesus Cristo / Ainda estou aqui". Era uma brincadeira com a longevidade artística de RC, aproveitando o título do filme de Walter Salles que, esse sim, está sendo o evento de fim de ano, atingindo até o momento mais de 2 milhões de expectadores! Um feito para uma época em que as pessoas não tem ido mais ao cinema e lido menos ainda (o filme é baseado no livro do Marcelo Rubens Paiva).

Cabe aqui uma interessante conexão. "É preciso dar um jeito, meu amigo", a canção que atravessa o filme "Ainda Estou Aqui" e faz seu fechamento, é do álbum de 1971 de Erasmo Carlos, talvez o seu melhor disco. Trata-se de uma balada existencialista claramente contra a ditadura mas que não me consta que chegou a ser proibida, talvez porque Erasmo não estivesse na lista dos artistas perseguidos. É assinada por Erasmo e Roberto. A dupla Lennon/McCartney registrava sempre em nome dos dois canções escritas por só um deles. Por exemplo, um dia Paul apareceu com "Penny Lane", que falava das referências de infância em Liverpool. Logo depois vem Lennon com "Strawberry Fields Forever", falando... das referências de infância em Liverpool! Ambas tem assinatura dos dois. Praticamente tudo que Roberto e Erasmo escreveram sozinhos repetem essa fórmula. Mas haveria alguma canção que apenas um escreveu e apenas o outro gravou? Parece que sim e a surpresa é que quem teria escrito "É preciso dar um jeito, meu amigo" foi o Roberto! Digo surpresa pois, apesar da composição "Debaixo dos Caracóis de seus Cabelos" - em homenagem a Caetano, depois de uma visita que fez a ele em seu exílio em Londres - Roberto não é conhecido como um ativista contra a ditadura. Pelo contrário. O site Memórias da Ditadura diz que "entre 1971 e 1972 Roberto cantou algumas vezes nas Olimpíadas do Exército, ganhou honrarias militares e apareceu num programa de TV em homenagem aos 11 anos do golpe, em 1975". Sem falar no emocionado agradecimento ao sanguinário Pinochet pela presença em seu show no Festival de Vina del Mar, no Chile, também em 1975.

Com o sucesso do filme e a volta de "É preciso dar um jeito, meu amigo" (que conta no momento com quase 10 milhões de audições só no Spotify), seria uma ótima ideia Roberto pela primeira vez apresentá-la em seu show de fim de ano com a presença do elenco de "Ainda Estou Aqui", já pensaram? Seria uma homenagem ao amigo Erasmo e uma tentativa de melhorar sua relação com a história. Quem sabe até um retorno à sua fase que eu chamo de "psicanalítica", do início dos anos 70, que tem duas músicas como ponto alto, "Traumas" (1971) e "O Divã" (1972). Mas não sei se isso interessa ao "rei". Enfim, devaneios de fim de ano. Em tempo: como resposta à canção "Debaixo dos Caracóis...", Caetano manda pra ele "Como Dois e Dois", outro libelo contra a ditadura: "Tudo vai mal, tudo / Tudo é igual / Quando eu canto / E sou mudo / Tudo em volta está deserto / Tudo certo /  Tudo certo como / Dois e dois são cinco".

Enquanto penso sobre temas existenciais neste fim de ano - Sartre que me desculpe a intromissão leiga - vejo um anúncio na TV sobre um evento lá no Rio Grande Norte. Trata-se do Carnatal 2024, uma referência à capital do estado e a época, óbvio. Ainda bem que não será nos dias 24 e 25. Entre os convidados Wesley Safadão, Henry Freitas, Durval Lelys, Kiko Chicabana, Vumbora, Xand Avião, Nattan, Rafa e Pipo, Ricardo Chaves (com participação de Sergynho Pimenta), etc. Desculpem não fazer uma análise deste line-up. É que não conheço ninguém e tenho dúvidas se quero conhecer. O único da lista que ouvi falar é do Wesley por causa do irônico sobrenome (ou codinome) Safadão. O que me lembra um petisco clássico (anos 70 e 80) que comi ontem na confraternização da minha turma da Escola Técnica Federal, Edificações 1978 (46 anos de formatura!). Chama-se "Sacanagem". Existem diversas versões sobre a origem do nome, talvez a mais provável é o fato de um ingrediente vir trepado em cima do outro, no mesmo palito, isso segundo Luiz Antônio Simas no soneto "Receita de Sacanagem" em seu livro "Sonetos de Birosca e Poemas de Terreiro". Em tempo (parte 2, na mesma crônica): A Anitta vai participar do Carnatal 2024. Essa eu conheço e respeito. Tanto pela beleza como pela atuação em suas redes sociais contra o ascendente fascismo nas eleições de 2022. Aliás ela vai lançar um novo sabor - Red Mix - do drink industrializado Beats que, segundo a propaganda, "combina a refrescância de notas cítricas e aroma de frutas vermelhas – como morango, amora e framboesa -, resultando em um sabor intenso com equilíbrio entre dulçor e acidez". Não sei não. Mas, como a Anitta é a garota propaganda, tudo bem.

No mais, dezembro corre. Entre acertos e desacertos vamos fechando um ciclo e iniciando o próximo. Talvez neste momento eu gostaria mesmo é de estar com meu pai e meu irmão procurando galhos entre as árvores para escolher um bem frondoso. Mas, como não sou Marcel Proust para ir "em busca do tempo perdido", restam-me leves lembranças e seguir em frente. Com ou sem retratação histórica de RC, que ainda está por aqui.


Postado por Marcos Oliveira em 07/12/2024

Comentários

  1. Oi Marquinhos! Sempre uma bela crônica. Meu amigo, é preciso dar um jeito! Eu não conhecia essa música e fiquei encantado com ela quando vi no filme. Trilha sonora que tem tudo a ver. Parabéns!

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  2. Crônica muito legal. Mistura emoção com sacanagem. Kkkk

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  3. Também não conhecia a música ! Parabéns pela crônica amigo ! 👍🐜

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  4. Adoro seus textos, e sempre me identifico com algumas linhas...

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