Amigo É Pra Essas Coisas

Não tem explicação mas algumas músicas parecem aderir ao subconsciente e sempre retornam à lembrança, mesmo que passemos muitos anos sem ouvi-las.
Uma desta categoria que faz parte do meu repertório é "Amigo é pra essas coisas", composta pelo genial Aldir Blanc (que partiu este ano) com seu amigo Silvio da Silva Jr., defendida pelo MPB-4 no III Festival Universitário de Música Popular Brasileira, na extinta TV Tupi, em 1970.
A gravação do MPB-4 foi tão boa que poucos se aventuraram a regravá-la. Pelo menos que eu conheça. Além disso acredito que seja um samba-canção de temática não tão atrativa para momentos mais serenos que se buscam reforçar - na maioria das vezes -  quando se ouve MPB. Para muitos pode soar um tanto quanto deprimente.

O formato dialógico não é tão comum no estilo, mais popularizado nos improvisos do Rap e nos desafios do Repente nordestino.
Não é o caso desta. Dois velhos amigos que não se viam há tempos, se encontram em um bar e começam a conversar. Quer dizer, mais ou menos. É que um deles não vai muito bem não. A maior parte do tempo é ele desfiando seu rosário de queixas contra sua situação. Já o outro é todo ouvidos e procura dar uma força para o infeliz. Coisa de amigo mesmo.

Como já registrei no início, tal construção melódica vez por outra retorna aos meus devaneios musicais e aí resolvi escrever sobre ela. Um tentativa de análise psicológica, filosófica e sociológica. Óbvio que trata-se de mera pretensão que tangencia o humor uma vez que não tenho formação nessas áreas. Nem mesmo em crítica musical e literária. Aliás, oportunamente, informo que não fui além da Escola Técnica em meus estudos regulares, o que me habilita - por mera ignorância - a me aventurar por onde quiser. Aliás as redes sociais estão cheias desses "especialistas". Mas juro que procuro me conter, no sentido de não ser incluído neste malvisto time.

Aldir Blanc

- Salve!
- Como é que vai?

- Amigo, há quanto tempo!
- Um ano ou mais

- Posso sentar um pouco?
- Faça o favor

- A vida é um dilema
- Nem sempre vale a pena

O enunciado "a vida é um dilema" me faz lembrar uma forma mais comum hoje de tratar tais temas: usa-se "é complicado...". Ao escolher a palavra "dilema", nosso pobre coitado já dá a dimensão da situação: filosoficamente trata-se de "raciocínio que parte de premissas contraditórias e mutuamente excludentes, mas que paradoxalmente terminam por fundamentar uma mesma conclusão" e, por extensão, a "necessidade de escolher entre duas saídas contraditórias e igualmente insatisfatórias". Começamos mal.

- O que é que há?
- Rosa acabou comigo

- Meu Deus, por quê?
- Nem Deus sabe o motivo

- Deus é bom
- Mas não foi bom pra mim

- Todo amor um dia chega ao fim
- Triste

Epa! Ao que parece todo o dilema tem a ver com a presença (ou a falta) de uma mulher: Rosa! Bem, não são poucas as narrativas cujo principio, meio e fim tem como ponto principal (ou único) a questão amorosa.


- É sempre assim
- Eu desejava um trago

- Garçom, mais dois
- Não sei quando eu lhe pago

- Se vê depois
- Estou desempregado

Estamos em 1970 e, apesar da tragédia que foi a Ditadura, o índice de desemprego não era tão alto como é hoje: os interessados na manutenção daquele status andavam investindo dinheiro por aqui para evitar uma convulsão social. Assim, podemos concluir que o desemprego do nosso caro amigo derivava mais do seu desânimo perante a vida, do que da situação econômica ou do seu possível despreparo para o mercado de trabalho.

- Você está mais velho
- É
- Vida ruim
- Você está bem disposto
- Também sofri
- Mas não se vê no rosto
- Pode ser
- Você foi mais feliz
- Dei mais sorte com a Beatriz

Estão vendo aí?! Pela primeira vez o interlocutor do pobre diabo dá uma pista de sua situação e reconhece que o problema do outro é mesmo amoroso, pois tudo de bom que ele conseguiu foi porque "deu mais sorte com a Beatriz", ao contrário do ex-companheiro da Rosa. Inclusive há uma diferença física entre os dois, que devem ter idade próxima. Um está mais "acabado" que o outro, que - como foi dito claramente - "deu mais sorte...".

- Pois é
- Vivo bem
- Pra frente é que se anda
- Você se lembra dela?
- Não
- Lhe apresentei
- Minha memória é fogo!
- E o l´argent?
- Defendo algum no jogo

Continua o "bem de vida" lembrando ao coitado da sua Beatriz, mas o da Rosa não se lembra pois a memória anda sofrível. Não é pra menos. E volta a questão do dinheiro (l'argent), preocupado que fica com o amigo desempregado. O que lhe alivia financeiramente e talvez psicologicamente é o hábito de jogar. Não fica claro que tipo de jogo. Pode ser jogo do bicho, ou corrida de cavalos, rinha de galo, baralho... Tudo isso era muito usual naqueles tempos.

- E amanhã?
- Que bom se eu morresse!

- Pra quê, rapaz?
- Talvez Rosa sofresse

- Vá atrás!
- Na morte a gente esquece
- Mas no amor a gente fica em paz

Neste momento, a descrição mais emblemática do caso. Não há sinal de uma possível ideia feminicida. Mas fica a dúvida se existe alguma possibilidade do sofredor por um fim à sua existência apenas pra ver a amada sofrer, seria uma comprovação póstuma de que, enfim, ele era amado. Ideia mais irracional impossível e as expressões "que bom se eu morresse" e "na morte a gente esquece" soam mais como um melodrama de linguagem, quase uma hipérbole sentimental.  Mas não se pode menosprezar o sofrimento do coitado, capaz de usar tais termos extremados.
No entanto é de se observar que o relator não detalha efetivamente o que ocorreu para que "Rosa acabasse com ele" (afinal, "nem Deus sabe o motivo"). Teria o amor de Rosa terminado apenas porque se esgotou espontaneamente, feito fogo na palha ao sol ou haveria um terceiro personagem que conquistara o coração da querida flor? Ou teria ele feito algo não aprovado por Rosinha? Percebem algum sinal de arrependimento nesta narrativa? Talvez...

- Adeus
- Toma mais um
- Já amolei bastante
- De jeito algum!
- Muito obrigado, amigo
- Não tem de quê
- Por você ter me ouvido
- Amigo é pra essas coisas
- Tá
- Tome um Cabral
- Sua amizade basta
- Pode faltar
- O apreço não tem preço, eu vivo ao Deus dará

O final não peca por exageros sentimentaloides, mas aponta a realidade dura da falta de carinho e de dinheiro. Como ele joga e foi mal no amor, pode ser que acabe ganhando um bom dinheiro no futuro. Mas no presente dependeu do amigo pra pagar um drink (provavelmente dois chopps) e ainda foi agraciado com um Cabral, nota de 1.000 Cruzeiros (Cr$) em 1970 (talvez equivalente hoje a uns 100 Reais, considerando a inflação do período).
Embora a "amizade baste", é fato que o amigo precisou fazer essa doação para que nada faltasse, mesmo sabendo que o "apreço não tem preço".
Apesar da expressão derradeira - "eu vivo ao Deus dará" - denotar resignação com um triste destino imutável, podemos ver sob um outro ângulo, mais positivo, que encontra paralelo hoje na conhecida canção do Zeca Pagodinho, onde ele diz "deixa a vida me levar, vida leva eu". Ou seja, a saída é aceitar os revezes e seguir em frente.

Faltou ao amigo, que ofereceu de forma diligente os seus ouvidos e suas palavras, apresentar uma possível solução para aquele que estava cheio de sofrência. Dizer que Rosa acabaria revendo sua posição. Ou que a única saída seria ele arranjar outro amor. As coisas não são bem assim, sabemos, mas vale como tentativa, pelo menos.

Talvez um dia alguém possa contar a continuação desta saga, para sabermos, afinal, o que aconteceu com tal personagem, torcendo para um final feliz.

Para efeito de fidelidade aos fatos reais acerca de minha relação com esta música, é correto que eu cite aqui como a nominava lá pelos idos dos anos 70, período de adolescência. Era comum apelidar certas canções. Por exemplo, o cantor americano George McCrae tinha uma música chamada "Rock Your Baby", cujo ritmo dançante convidava a sair pulando pelo salão. Virou "Melô do Puladinho" e assim ficou conhecida nas rádios AM da época (até porque era mais fácil para o ouvinte pedir a música na emissora ou na loja de disco). "Melô" vem de uma abreviação de melodia. Enfim e em resumo, por causa da letra e devido à uma certa ironia carinhosa, denominei "Amigo é pra essas coisas" de "Melô do Fudido". Ideia de jovem irreverente. 
E vamos em frente, caros amigos e amigas, estou aqui pra essas coisas.




Comentários

  1. Parabéns pela excelente análise! Estava eu a querer saber, mesmo desconfiando, o que seria um Cabral...

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  2. O cara é cachaceiro, vagabundo e viciado em jogo, mas "nem Deus sabe" por que a Rosa largou dele. E o amigo, em vez de mandar ele tomar jeito de gente, só alimenta seus vícios e empurra ele de volta pra atormentar a pobre moça.

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  3. Depois do amigo dizer q ia se matar o outro disse "vá atras".
    Que tipo de amigo é esse?
    Essa parte da musica que não entendi.

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    Respostas
    1. Ele fala isso na sequência da questão da Rosa. No caso, vá atrás de Rosa, não morrer.

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    2. Achei que vá atrás, um jeito de falar, tipo “vá atrás disso “, “até parece que rosa sofreria”…

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  4. Também sempre entendi a expressão como:ir atrás de Rosa.Mas realmente para os dias de hoje, a canção soa um pouco machista.O amigo deveria ajudá-lo a se livrar do vício de jogar.Rosa deve já ter sofrido demais com nosso personagem.

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  5. De médico, louco e agora pelo que vejo também autor musical ,todos tem de dar um pitaco.Que bom que os autores se bastaram .A música retrata um drama e dramas são trechos de vida que nunca têm final feliz. Este clássico musical é uma obra de arte.

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