Também estou por aqui

Tinha 8 anos na primeira vez que fui ao cinema. Era 1968, do fatídico AI-5, embora eu não fizesse ideia do que estava acontecendo. O Cine-Theatro Campo Grande, com arquitetura Art Déco e 1.400 lugares, ficava em frente a linha ferroviária Central do Brasil, cuja grande estação final ficaria internacionalmente famosa com o filme do Walter Salles de 1998. Inaugurado em 1938, fechou as portas em 1994. Parece que o governo instalou ali um restaurante popular, destino bem mais nobre do que uma IURD, como tem sido com os grandes cinemas de rua.

O filme era uma das versões cinematográficas - em preto e branco - da Paixão de Cristo. Naquele tempo era frequentador assíduo das escolas dominicais da Igreja Batista, seguindo o exemplo e a recomendação de minha mãe. Assim, havia o incentivo familiar para essa estréia. Desde essa primeira vez (e provavelmente por causa dela) nunca me empolguei em ver outras produções relacionadas com o sofrimento imposto a JC. Por sorte era uma seção dupla e o outro filme fazia parte da série "O Gordo e o Magro". Aí sim me diverti. Foi um daqueles marcos inesquecíveis.

Me lembrei disso esses dias porque fiz um esforço de memória para tentar recordar se alguma vez tinha retornado ao cinema para ver o mesmo filme. É que em novembro último assisti "Ainda Estou aqui" e voltei este mês para ver de novo. A única chance disso ter ocorrido foi em 1978, no fenômeno "Os Embalos de Sábado a Noite". É que precisávamos tentar aprender os passos de dança do John Travolta ao som das músicas dos Bee Gees para fazer bonito nas pistas de danças de garagem. Mas tenho dúvida se isso realmente aconteceu pois não havia dinheiro para ir duas vezes ao cinema em um espaço curto, mesmo pagando meia entrada com a carteira de estudante da Escola Técnica Federal.

Dispensável fazer aqui mais uma tentativa de análise do filme e das emoções que ele desperta. Seja pela atuação da Fernanda Torres, seja pela forma que Walter Salles fez a adaptação do livro do Marcelo Rubens Paiva. Isso já tem sido feito inúmeras vezes no Brasil e no exterior por pessoas altamente gabaritadas. Urge no entanto enfatizar que nossa alegria e nossa torcida pelo filme em tantas premiações mundo afora se deve sobretudo pelo resgate de um período triste que parece não ficou devidamente registrado na lembrança de muitos brasileiros. Inexplicável que em período recente milhares tenham ido às ruas pedindo a volta da ditadura. Tento entender isso há tempos. Talvez a pessoa que tenha chegado mais perto de uma conclusão foi o Sociólogo Jessé de Souza em sua obra "O Pobre de Direita: A Vingança dos Bastardos - O que explica a adesão dos ressentidos à extrema-direita?" (Editora Civilização Brasileira; 225 páginas; 2024). Por esse aspecto, torna-se o filme atual não somente no Brasil mas no mundo. 

Não me furto no entanto a comentar duas cenas sem maior importância no enredo mas que me despertaram novas lembranças. A primeira é quando duas das adolescentes colocam na vitrola um compacto (disco de vinil pequeno com apenas duas músicas) e começam a dançar. Uma amiga comenta com Eunice: "ainda bem que elas não entendem francês". Mais ou menos. Não  precisa falar a língua da Edith Piaf para entender do que se trata. A canção é "Je T'aime - Moi Non Plus", interpretada pelo casal Jane Birkin e Serge Gainsbourg. Lançada no Brasil em 1970, no início os censores "apenas" proibiram sua execução pública (emissoras de rádio e TV, boates, festas, etc.) e restringiram a venda do disco a maiores de 18 anos mas logo depois recolheram as cópias nas lojas, pressionados pela liga conservadora que havia apoiado o golpe de 64.

Conforme afirmei, era um frequentador da Igreja Batista. Por volta de 1970 participei de um evento em um sítio junto com centenas de outros membros. No início da tarde vejo um grupo de garotas debaixo de uma mangueira com um toca-discos portátil, daqueles que usavam quatro pilhas grandes (acho que esse tamanho nem existe mais). Estavam ouvindo um disquinho que tinha uma atraente melodia de um órgão. Me aproximei para ouvir melhor mas as meninas - que tinham uns 15 anos - não gostaram muito não. Com 10 anos fiquei sem entender. Tempos depois ouvi aquela mesma música outra vez. Só então descobri que elas estavam ouvindo a proibidona "Je T'aime - Moi Non Plus"!

A outra cena é quando um dos agentes da repressão que acampou na casa da família Paiva começa a mexer nos discos da casa. Ele pega dois LPs e faz um gesto negativo. O primeiro é o terceiro álbum de Caetano Veloso lançado em 1971 quando ele estava no exílio em Londres, depois de ficar preso por meses no Rio. O outro é o disco de estreia da banda britânica King Crimson, "In The Court of the Crimson King" de 1969. Isso foi especial para mim que editei nos anos 90 o Jornal Metamúsica, especializado no gênero Rock Progressivo. Provavelmente esse álbum foi escolhido por conta de sua icônica capa que contém uma pintura de Barry Godber, talvez inspirada na obra "O Grito" do holandês Edvard Munch, refletindo todo o desespero pelo qual passava não só a família mas todos os perseguidos pela ditadura.

Centenas de outros detalhes e lembranças podem ser percebidos ao longo dos emocionantes 135 minutos de duração do longa. No entanto o momento é  de torcer pelo Oscar no domingo. Mas, independente do resultado, todos já ganhamos com a repercussão mundial que o filme conseguiu. Fernanda Montenegro, aos 95 anos, agradeceu a Deus a oportunidade de estar viva para ver tantas vitórias da filha. E eu não vivia uma emoção cinematográfica assim desde 1968, na primeira vez que fui a uma sala escura. Que bom que eu também estou por aqui.

P.S.: O canal Max/TNT transmitirá a cerimônia a partir das 19 horas do domingo (tapete vermelho com direito a chiquérrima entrada de nossa musa Fernanda Torres). A Globoplay também deverá transmitir a partir de 21 horas, provavelmente com sinal aberto. Já a Globo transmitirá somente a parte principal às 22 horas. Preparem a pipoca e o guaraná!

Comentários

  1. Olá meu amigo! Tava faltando uma crônica sua sobre essa maravilha. E vc fez bem do seu jeito tão agradável que nos insere em suas histórias. Vamos pra cima no domingo. Mas se não vier nenhum Oscar, vc está certo, pois já ganhamos! Abração! TMJ

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  2. Camarada, os bozominis estão com ódio deste filme. Teve um sujeito de um canal do YouTube que disse em novembro que o filme era o maior fracasso e que a Fernandinha estava pedindo pelamordedeus para as pessoas irem no cinema. Que fiasco desses extremistas né não?

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    1. Não estão torcendo pro filme brasileiro? Mas não são patriotas?? Rsrs

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  3. Em Campos eu ia muito no Cine Goitacá. Hoje é uma igreja universal. :(

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    1. É mesmo Jonas. Em meados dos anos 70 Campos tinha muitos cinemas de rua. Além do Goitacá (onde eu assisti o citado "Os Embalos de Sábado a Noite"), tinha o Trianon, Dom Marcelo, Capitólio, Coliseu, São José, São Salvador, Cine Guarus e outros.

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  4. Suas crônicas são sempre maravilhosas. Leio todas! Fernandinha é musa e diva, vamos trazer pelo menos um Oscar! Me diz uma coisa, em CP tinha outro cinema?

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    1. Obrigado! 😊
      Com "Ainda Estou Aqui" Fernando Torres chega ao patamar de uma Merryl Streep e de sua mãe, claro!
      Tinha sim. Era o Cine Palácio Campo Grande, do outro lado da linha de trem. Era muito grande também.

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