Nossa Senhora de Fátima, Lady Gaga, Ubuntu e o Novo Papa
No domingo passado a imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima chegou a minha cidade. Para você, que não é Católico: Fátima é uma pequena cidade de Portugal onde ocorreram - em dois momentos, Século XVIII e Século XX - aparições Marianas ou seja, aparições de Maria, mãe de Jesus. Fatos reconhecidos oficialmente pela Santa Sé (jurisdição eclesiástica da Igreja Católica Apostólica Romana, localizada no Estado do Vaticano, governado pelo Sumo Pontífice - o Papa). Essa imagem percorre o mundo e recebe homenagens e pedidos de bençãos. Ora direis, culto à imagem!? Negativo. Apenas um ponto de facilitação de conexão com o sagrado que nos habita.
Fomos à missa na grande igreja onde ela estava hospedada naquela noite dominical. Estava lotada. A presença da imagem era mais um motivo para convergência entre todos. Unia, em um momento da sociedade onde o individual supera o coletivo. Mesmo em silêncio sentia-se na devoção de cada um o espaço de encontro, de abraço coletivo, de emanação das energias sagradas do bem, do apoio mútuo, do reconhecimento do outro. Nossa Senhora de Fátima proporcionou ali esta espécie de milagre em tempos tão estranhos.
Na noite anterior teve o show da Lady Gaga. Eu não fui. Encaro bem shows no Maracanã - como foi com o Roger Waters e o Paul McCartney - ou em arenas, como os da Farmasi - Caetano & Bethânia e Gilberto Gil -, mas para ir em Copa, só se eu ficar lá no final, a uns três km do palco. Neste caso melhor ver em casa. Acompanho pouco a carreira musical dos astros pop da atualidade. Em música popular meio que parei ali pelas décadas de 60, 70 e 80 do século passado. Apenas uma tendência natural. Mas não dá para ignorar nomes do porte de Gaga que conseguiu notoriedade graças a sua alta capacidade artística, seja como cantora, atriz, compositora, pianista, etc. E uma presença de palco que dispensa comentários.
O show de 2 milhões de pessoas foi precedido por uma semana movimentada em frente ao Hotel Copacabana Palace, onde estava hospedada (que, por coincidência, foi tema de minha crônica passada, aqui). É que os fãs fizeram plantão, tentando ficar perto da diva. Ora direis, culto à celebridade?! Neste caso não. Bem, eu não acho que seja. A história dela se confunde com aquilo que mostra em sua arte. Além de uma estética transgressora - uma ruptura que ela teve de fazer para conseguir ir em frente, depois de um colapso com episódios de pânico, exaustão e depressão - Lady Gaga apresentou-se como uma alma que acolhe e apoia, utilizando sua visibilidade para, eticamente, ajudar minorias que são historicamente segregadas. Criou com sua mãe a Fundação Born This Way - BTWF - que visa "priorizar a saúde mental e o bem-estar dos jovens, trabalhando para promover gentileza e conversas abertas e honestas sobre saúde mental, validando as emoções e erradicando o estigma em torno deste tema". Tornou-se uma referência para a comunidade LGBT que a tem como ponto de resistência e sobrevivência na selva "conservadora".
Os eventos em Copacabana mostraram que o que cura e salva é o afeto coletivo. Afeto compartilhado também pelas pessoas que se aproximavam da imagem santificada na missa: o acolhimento, o ouvir, o respeitar e conviver. Sem comparar as duas experiências, é fato que quem acolhe recebe de volta acolhimento, agradecimento. Tomando como ponto de referência a comunidade que mais adora Lady Gaga, lembro que em sua primeira entrevista após sua primeira viagem internacional - exatamente ao Brasil - Papa Francisco foi instado a colocar a posição da igreja em relação aos homossexuais. "Se uma pessoa é gay e busca a Deus, quem sou eu para julgá-la?". Simples assim. Resta torcer agora que o Papa Leão XIV tenha o carisma e continue o legado de Francisco no que se refere à preocupação e acolhimento dos que mais precisam. As primeiras impressões que tive dele foram ótimas, sobretudo por seu discurso de posse que continua trechos como esse: "A todos vós irmãos e irmãs, de Roma, da Itália e do mundo inteiro, queremos ser uma Igreja sinodal, uma Igreja que caminha, que busca sempre a paz, que busca sempre a caridade e busca sempre estar próxima, especialmente daqueles que sofrem."
Estas observações e comparações me fizeram lembrar de um texto que li outro dia, sobre a filosofia Ubuntu. Originária dos povos Zulu e Xhosa (Bantus), localizados ao sul do continente africano, tem no sentido de coletividade sua marca central. Mas vai além pois coloca o divino, a comunidade e a natureza como fatores inseparáveis sendo, em última instância, uma coisa única. Nesse sentido, toda e qualquer separação, desunião, individualismo vai contra essa unidade que, ao final, é o sentido da própria vida. A palavra Ubuntu, em uma tradução aproximada, já indica isso: “Eu sou porque nós somos”. Ou "o que cada um faz, ou que deixa de fazer, tem consequências na vida dos demais". Segundo Desmond Tutu, "a minha humanidade está inextricavelmente ligada à sua humanidade".
Com essas definições não é difícil fazer uma comparação com a conexão entre os presentes na missa e a conexão entre os fãs em Copacabana. Com o caminhar junto - democraticamente em seu sentido mais profundo, onde todos estão ligados a tudo - ganha força a empatia e a justiça social como direito de todos. E o mundo secular não está separado do divino nem da natureza. Seja em um ambiente sagrado ou em um show musical, o respeito ao outro é o respeito a si mesmo.
Estamos em um momento histórico em que visões como da filosofia Ubuntu são primordiais. A intolerância segue em ritmo absurdo, fortalecida pela atuação das redes sociais que ganham mais dinheiro quanto mais o ódio for explicitado. As estratégias de utilizar as pessoas como massa de manobra política, muitas vezes utilizando uma pseudo sacralidade ganham força, explorando exatamente os de maior fragilidade econômica e educacional. Por fim, com o aquecimento global, seguimos em ritmo acelerado para um colapso planetário de efeitos devastadores para todos. Neste caso não vai importar o credo, a cor, a orientação sexual ou a posição que se está na pirâmide social (embora os da base sempre sejam os primeiros a sofrer). Mesmo parecendo utópico, nesta "altura do campeonato em que caminha a humanidade", um retorno aos fundamentos da Mãe África talvez seja fundamental. "Uma pessoa com Ubuntu tem consciência de que ela é afetada quando o semelhante seu é afetado".
Assim, Ubuntu para todos nós! E viva Leão XIV! Ubuntu para ele também.
P.S.: Vejam essa história bem conhecida:
Um antropólogo que estudava os povos da África Subsaariana propôs uma brincadeira de velocidade para as crianças de uma tribo. O primeiro que conseguisse correr até uma árvore e retornar ganharia como prêmio muitas guloseimas. Para surpresa do estudioso as crianças deram as mãos, correram juntas e retornaram da mesma forma. Ele perguntou porque fizeram aquilo pois o certo seria ter apenas um ganhador. Elas responderam:
“Como uma de nós poderia ficar feliz se todas as outras estivessem tristes?”
Essa é a essência Ubuntu, que deveria ser disciplina nas escolas de ensino fundamental: “A resposta singela da criança é profunda e vital pois está carregada de valores como respeito, cortesia, solidariedade, compaixão, generosidade, confiança – enfim, tudo aquilo que nos torna humanos e garante uma convivência harmoniosa em sociedade.”
Que bom ler um texto que trata de temas tão distintos mas que vc conecta tão bem. E é essa a essência Ubuntu, que eu conheci há muitos anos mas que só agora está sendo mais divulgada.
ResponderExcluirValeu amigo(a). Gostei do nome...😊
ExcluirSendo o Ubuntu uma antiga filosofia que traz um novo paradigma possível ao mundo contemporâneo, ele se constitui como uma pedagogia da ancestralidade que pode ensinar o mundo a viver coletivamente sua pluralidade de modo empático, solidário, fraterno e acolhedor.
ResponderExcluirExcelente! 👏🏻👏🏻👏🏻🙏🏻
ExcluirConstantemente reflito a respeito:"Como posso ser totalmente feliz se há tantos infelizes?”
ResponderExcluirRealmente. Uma reflexão necessária para todos.
ExcluirAdorei essa conexão que você fez!!! A cada dia percebo como é importante olhar e sentir as necessidades do outro.
ResponderExcluirSim. Na nossa correria diária não temos tempo de fazer esse tipo de reflexão. Mas a cada dia isso se torna mais importante.
ExcluirIncrível essa conexão que você relatou…. Amor e respeito ao próximo… a base de uma sociedade saudável. Parabéns!
ResponderExcluir😊🙏🏻🤝🏻❤️
Excluir