Projetos de Lei

As observações de detalhes simples do nosso dia a dia em conjunto com memórias de mais de 60 anos vividos nesta terra, que não é plana diga-se de passagem, são as matérias primas deste pequeno espaço escondido na grande rede. Esta coleção poderá, quem sabe, um dia vir a se tranformar em uma publicação em forma de livro. Ou não, como diria Caetano.
As características do texto tendem a ser leves, eventualmente bem humoradas e curiosas. Com leveza e naturalidade, o que proporcionou a fidelidade de leitura de meia dúzia de amigos de boa vontade. Esses com certeza já tem seu espaço reservado no paraíso.
Nem sempre foi assim. Ativista político com certa facilidade de escrita, me debrucei por muitos anos sobre essa temática espinhosa mas fundamental para a vida de todos, indistintamente. Acredito que contribuí minimamente para a busca de um mundo melhor.
Não sei delimitar muito bem quando comecei a mudar de abordagem. Mas não foi abruptamente. Tenho uma leve desconfiança que isso se deu acompanhando uma linha do tempo, depois que ultrapassei o marco regulatório do que chamam terceira idade. Ou seja, desisti de mudar o mundo ou percebi que não tinha mais tempo de faze-lo. Como disse, é fato que hoje reminiscências em paralelo com considerações sobre fatos corriqueiros são o que me movem em direção ao notebook.
Porém, no entanto, contudo, todavia, muito raramente e para meu desânimo, tenho uma recaída, obrigado pelo péssimo hábito de acompanhar o noticiário. 
Ultimamente duas novidades vindas do Congresso me fizeram sair do sério. Os projetos de lei sobre privatização das praias e a PL do estuprador. Essas denominações não são as oficiais e podem dizer que as coisas não são bem assim, mas são sim. Ponto.
Nada na extremidade radical em política e em todos os campos costuma dar um bom resultado. Não importa de qual lado. E o problema é que afeta a todos.
Tenho para mim que o avanço da extrema direita que rege grande parte do mundo hoje é resultado de estratégia neoliberal para "passar a boiada", se é que me entendem. Se não, me explico de forma bem superficial porque isso atualmente afeta o meu ânimo e eu não quero tirar o meu prazer de escrever neste sábado, já quase final de um outono atípico.
Este movimento, denominado por alguns ideólogos de neofascista, tem características diferentes de acordo com o país ou região do globo (não estou falando do sistema de comunicação, embora até pudesse). Na Europa, por exemplo, a questão religiosa tem pouco ou nenhum peso real. O objetivo da adesão é por motivos ligados a criação de leis anti-imigratórias. Há ali claramente o componente xenófobo. Já nos EUA, de forma furtiva, o que parece ser o mote é a supremacia branca, entre outros temas.
Por aqui a pauta de costumes (ou morais) é o que move congressistas eleitos na new wave of hate. Sempre existiram as chamadas bancadas religiosas, da segurança, do agro, etc. Mas esses neófitos parecem ter sido ali colocados para criar um novo mundo fundamentalista, onde as liberdades individuais existem mas desde que seja de acordo com o que eles e seus eleitores acham que devem ser, baseados em uma pretensa lei maior celestial, numa leitura singular, de acordo com seus interesses. Uma nova República de Gileade, conforme descreve a escritora canadense Margaret Atwood em suas obras distópicas "O Conto da Aia" e "Os Testamentos". Seria baboseira, motivo de chacota não afetassem de forma negativa tantas pessoas em situação de vulnerabilidade. Isso é caso de saúde pública e não religiosa.
No caso da PL do estupro, as vítimas serão meninas pobres periféricas que poderão ficar 20 anos na cadeia enquanto seus algozes, se indentificados, presos e condenados, ficarão metade deste tempo e ainda poderão invocar o direito de paternidade caso o aborto (hoje legal em determinadas situações) não tenha sido consumado.
Ao que parece feministas que defendem seus legítimos direitos, religiosos progressistas e legisladores e juristas idem são os principais alvos destes eleitos pela vontade do povo. Hipocrisia pouca é bobagem quando se trata de tratados morais ditados pelas figuras de proa desse movimento.
Aí que entra a referência ao neoliberalismo radical que deveria ter decretado sua falencia em 2008 com a crise nos EUA que obrigou o governo americano a estatizar empresas para salvá-las e reprivatizar depois. Claro que não foi isso que aconteceu. Depois de "mamar nas tetas do governo" o sistema percebeu que precisava se manter a salvo e é através do investimento na extrema direita mundial que o caminho se mostrou mais fácil. Desta forma, por trás das pautas biblicas em um estado laico está a colocação de estado mínimo e que se danem os desafortunados que precisam de apoio estatal. E lá se vão as joias da coroa em privatizações pra lá de suspeitas em todas as áreas. Da educação à prestação de serviços básicos.
Enquanto isso a estratégia é clara: obrigar a população esclarecida a gastar suas energias defendendo minorias que somados são na verdade maioria: mulheres, negros, LGBTs, crianças em estado de vulnerabilidade, etc. E somos sim obrigados a fazer isso e fazemos. As infames PLs perderam força. A das praias pela mobilização nas redes socias. A do estupro pelas redes sociais e ruas. A repercussão obrigou um passo atrás na extrema direita, que usa essa estratégia também para chantagear o governo, afinal elas estão na gaveta do presidente da câmara com urgência aprovada, é só puxar e colocar em votação do mérito.
Enquanto perdemos nosso tempo indignados e trabalhando para reverter, a boiada neoliberal vai passando e todos estamos pagando e pagaremos por isso, pois o excutivo eleito não consegue colocar a contento seus planos de desenvolvimento e reverter a brutal diferença social histórica que rege nosso país desde sempre.
A luz no fim do túnel - para não dizer que não falei de flores - foram exatamente as recentes citadas mobilizações contra os dois projetos. Que isso se amplie. Só a sociedade pode segurar a sanha neoliberal (estou falando de dinheiro e poder para os mesmos de sempre, do país e do exterior), disfarçados de implatação - colocados goela abaixo - de preceitos pseudo religiosos em um estado laico.
Então. É isso. Prometo voltar - atendendo aos meus seis leitores - a abordar temas leves no próximo texto. Definitivamente não tenho mais saúde para este embate. Deixo para os mais jovens, torcendo que assumam essa difícil batalha que parece interminável.
De minha parte, daqui a pouco vou assistir a uma partida da Eurocopa neste sábado. Mais tarde abro uma garrafa de vinho ou tomo uma cerveja bem gelada ao som de Jazz. Mas antes vou a missa das 19 horas...

Comentários

  1. Marcos, não me identifico com a esquerda mas seu texto expressa o que tenho visto e pensado a respeito. Deputados de direita que votei no passado tem migrado para essa extrema direita que não representa minha forma de pensar. O comportamento desses deputados que eu tenho acompanhado na câmara são vergonhosos. Suas observações não são ativistas. Expressam um bom senso que todos deveriam ter, a direita ou a esquerda. Religiosos ou não. Um país não pode ficar refém dessas pautas inomináveis que eles estão criando. Parabéns pelo seu blog, que você consiga transformá-lo em um livro. Suas crônicas são uma delícia de ler mas acredito que chegam a poucas pessoas infelizmente. Eu só descobri recentemente.

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    1. Obrigado por participar deste debate Luiz Alberto. Suas colocações demonstram que não estamos em lado opostos. Estamos a favor da defesa do país, de nossas individualidades e dos mais vulneráveis. Grande abraço!

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    2. Sobre o livro, realmente é projeto mas tem de ser viabilizado economicamente. Nosso país anda pobre em muitos sentidos. No literal e no cultural.

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  2. Oi Marcos. Veja esse comentário da Débora Diniz:

    O mais difícil em tentar uma conversa razoável sobre o projeto de lei que protege os estupradores é a falta de razoabilidade. O projeto não é sobre aborto, estupro ou convicções morais. É uma manobra política com muitos alvos, inclusive o ódio às meninas e mulheres que resistem à política dos homens.

    É um projeto que parte do poder do populismo penal: aumentar penas de fenômenos sociais controversos para ganhar tração pública. É sobre uma quebra de braço entre STF e congresso nacional entre o que se, falsamente, descreve “pautas de costumes”. Não há pauta de costumes em aborto: quem mais morre ou adoece pelo aborto criminalizado são meninas e mulheres negras e pobres. É sobre desigualdade.

    Na disputa com o STF, o poder médico está ofendido com a liminar de ministro Alexandre de Moraes. O CFM que tudo pode e tudo se meteu na política bolsonarista foi ofendido com a resolução cancelada. Mas há razões amplas para a disputa de Lira com STF ganhar força com um tema polêmico.

    É ainda sobre um ano de eleição, que acovarda a bancada do PT, ela mesma confusa sobre como deve ser a lei do aborto. Sim, tristemente, a separação esquerda e direita não nos protege aqui. São os homens do partido que também se inquietam quando o tema é a descriminalização do aborto. Por isso, a negociata para o voto ser secreto.

    É ainda um teste de lealdade ao Lula, como foi noticiado na imprensa. Um teste se irá cumprir as promessas feitas à bancada evangélica nas eleições e nos acordos políticos.

    No meio disso tudo estão as meninas vítimas de estupro. Meninas, amedrontadas e violentadas. Meninas que deveriam estar no centro de nossas preocupações. Estão mulheres adultas em risco de morte. Estamos todas nós mais desamparadas que nunca. Mas também mais revigoradas pelo encontro entre mulheres.

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  3. Impressionante e fundamental esse blog, suas linhas se texto consegue de forma clara mostrar nossa realidade.

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    1. Valeu meu amigo. Estamos juntos nesta batalha! Grande abraço!

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  4. Um texto muitíssimo rico, Marquinhos! Parabéns!

    A Guerra não está acontecendo só entre os EUA e a OTAN contra a Rússia, na Ucrânia! Nem o genocídio em Gaza, promovido por Israel, com apoio irrestrito dos EUA, são fatos isolados da Projeto de Lei brasileiro que quer implantar por aqui a máxima dos exércitos vitoriosos, em guerras históricas, quando os soldados do front eram lançados sobre a população civil, (notadamente, velhos, mulheres e crianças indefesas, pois os homens já haviam sido desimados) e lá estavam livres para cometer todo tipo de absurdo, mas principalmente violentar as mulheres jovens, pois uma vez engravidadas, uma nova gente iria surgir obrigatoriamente pelo ventre, e não mais seria aquele determinado povo, mas um outro!

    O que ocorre hoje consegue ser pior! Pois que sequer sabemos que o Brasil é a bola da vez!!

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    1. É isso, amigo. Existem mais coisas acontecendo entre o céu e a terra do que supõe a nossa superficial análise política. Preocupante. Mas sempre foi assim. Quer dizer, tá pior! Ótimas considerações. Obrigado! Grande abraço!

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  5. É um prazer poder acompanhar o seu talento, Marcos, sempre amigo do bom senso e refém da coerência, fiel companheira para todos os tempos. Tive o privilégio de estar ao seu lado e, por vezes, perceber as condições de produção da sua valiosa obra. Acho que pode render um bom livro. Faço gosto. Não deixe este sonho pra trás.
    Seu amigo e Admirador, Marcus Vinicius ( Radiopo operador )

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    1. Valeu pelas palavras meu amigo. Um prazer ter convivido contigo no trabalho. A admiração é mútua. Grande abraço pra você!

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