Do Subúrbio à Zona Sul

Quando vejo o Rio de Janeiro nas reportagens turísticas, comprovo que moro em outra cidade. Gosto de viajar pra lá nos fins de semana. Já entenderão.

Moro em um distante subúrbio da Central do Brasil, pequeno bairro situado às margens da linha férrea. Acordo todos os dias às 4 da manhã. Faço o café. A marmita já está pronta na geladeira. Depois de dez minutos de caminhada chego na estação, por volta de 4:40 h. O trem já vem lotado. Serão duas horas em pé até chegar no centro da cidade.  As sete já bati meu cartão e começo mais um dia. Melhor dizendo, meu dia já começou há três horas.

Meu trabalho é no almoxarifado. Controlo a entrada e saída dos materiais de construção dos estoques. Chegam dos fabricantes e saem para a rede de lojas da empresa.

Fico em frente ao computador alimentando os dados mas sempre tenho de supervisionar as movimentações. Ao longo do dia sobram muitos momentos em que não há nada para fazer. Há muitos anos descobri uma biblioteca pública perto. Nunca gostei de ler mas acabei adquirindo o hábito, para preencher as horas vagas. Este hábito mais o computador com acesso à Internet me mostraram um mundo que eu não conhecia.

Um dia os computadores antigos foram substituídos por outros mais modernos. A empresa doou os antigos para alguns empregados e eu fui contemplado. Levei pra casa no trem mesmo, apesar do peso. Aos poucos minhas leituras foram se transformando em vontade de escrever neste velho computador.

Tenho 55 anos. Trabalho na mesma empresa há 30. É esse o tempo da minha rotina diária. Chego em casa por volta das 19:30 h. Preparo a janta que vai também para a marmita de amanhã. Moro sozinho na casa simples que meus pais me deixaram, filho único que sou. Não casei, muito menos tive filhos. Devido à minha timidez tive poucas namoradas na juventude. Depois de muito tempo tentando, desisti e assumi a minha solidão. O que nunca foi uma coisa ruim. Tenho os meus livros e agora escrevo um pouquinho toda noite, antes de dormir por volta da 10 horas. Sem esquecer de Hermes meu cachorro caramelo e de Tri, meu gato cinza. Eles me esperam chegar em casa e ficam me acompanhando até a hora de ir para a cama. Sem parentes próximos e amigos chegados. Apenas alguns antigos vizinhos e os colegas de trabalho.

Sobre o nome dos meus bichos, eu retirei de um antigo livro que li sobre o Egito e seus deuses. Achei muito interessante a história de Hermes Trismegistro, tema de um disco do Jorge Ben nos anos 70. Foi a época em que me tornei o tutor deles, há uns 12 anos. Eu fiquei muito curioso sobre as leis herméticas e até fiz um cartaz que coloquei no meu quarto e que reproduzo a seguir, caso vocês se interessem:

Lei do Mentalismo: "O Todo é Mente; o Universo é mental".

Lei da Correspondência: "O que está em cima é como o que está embaixo. O que está dentro é como o que está fora".

Lei da Vibração: "Nada está parado, tudo se move, tudo vibra".

Lei da Polaridade: "Tudo é duplo, tudo tem dois pólos, tudo tem o seu oposto. O igual e o desigual são a mesma coisa. Os extremos se tocam. Todas as verdades são meias-verdades. Todos os paradoxos podem ser reconciliáveis".

Lei do Ritmo: "Tudo tem fluxo e refluxo, tudo tem suas marés, tudo sobe e desce, o ritmo é a compensação".

Lei do Gênero: "O Gênero está em tudo: tudo tem seus princípios Masculino e Feminino, o gênero manifesta-se em todos os planos da criação".

Lei de Causa e Efeito: "Toda causa tem seu efeito, todo o efeito tem sua causa, existem muitos planos de causalidade mas nada escapa à Lei".

Não sei que aplicação isso pode ter em minha vida mas eu gosto desses enunciados.

Mas retorno agora ao que comentei no primeiro parágrafo. Hoje é domingo e tenho o dia todo para escrever. Acabo de retornar da missa das 8 horas na Paróquia Santa Sofia, aqui perto. Meu bairro não tem muitos atrativos de lazer, por isso fico em casa direto quando não estou trabalhando. No percurso para o trabalho, vou olhando pela janela as estações e bairros que vão passando. Praticamente todo os subúrbios são formados de casas e edifícios simples, circundados por morros que fazem a atmosfera ficar abafada a maior parte do ano. Os nomes dos bairros são bem conhecidos de quem mora por ali, mas estranhos para quem é de fora: Paciência, Cosmos, Inhoaiba, Cascadura, Realengo, Deodoro... E esses tem as estações da Central. Existem centenas de outros mais escondidos, que nem o carioca suburbano tem conhecimento pleno. Teve uma época que pensei em escrever um livro sobre eles, seus nomes curiosos, mas esbarrei na falta de tempo e de informações. Cheguei a iniciar uma pesquisa. Por exemplo, alguém conhece o Curral Falso? É uma micro-região de Santa Cruz. Deu nome a uma estão do BRT. Demorei mas consegui descobrir em uma publicação a origem do nome: "Sua denominação vem desde os tempos jesuíticos, segundo a tradição deveu-se à existência nas proximidades de grande curral, onde os bois após serem recolhidos, tinham saída impedida por oculta cerca, posta no lugar onde haviam entrado". Se gostaram do tema, sugiro que pesquisem bairros como Anil, Tanque, Praça Seca, Quintino, Santíssimo, Taquara, etc.

Vou explicar porque falei que gosto de viajar para o Rio nos fins de semana. De quinze em quinze dias arrumo a mochila e saio sábado de manhã. Atravesso a linha de trem até a avenida do outro lado. Já foi mais complicado mas hoje é mais simples chegar à Barra da Tijuca através do BRT. O onibus expresso vem de Santa Cruz, passa por Campo Grande e antes de chegar ao Recreio e à Barra, atravessa as entradas de Guaratiba, Pedra de Guaratiba e Barra de Guaratiba.

Do terminal Alvorada sigo até até a estação final, inicial pra mim, do metrô, a Estação Oceânica. Através dele chego rapidamente à Ipanema e Copacabana. Ali tem uma pequena pousada no Bairro Peixoto onde fico de sábado para domingo. São meus finais de semana preferidos. Ganho pouco mas como sou sozinho economizo para me dar esse luxo. Procuro os eventos culturais gratuitos, além da praia. Gosto do meu subúrbio onde o destino me colocou mas existe outro mundo que me interessa mais. O Rio é uma cidade em várias. Mas o que aparece para o mundo é o Rio Zona Sul, do trecho que vai do inicío do Aterro, no Aeroporto Santos Dumont, até o final do Leblon, passando pelo Catete, Laranjeiras, Flamengo, Botafogo, Urca, Copa e Ipanema. O subúrbio pobre não existe nas estatísticas turísticas. A não ser pelo samba e carnaval. A beleza da área nobre da cidade é privilégio de uma minoria. Sei que não faço parte dela, meu lugar é do lado de lá das montanhas, mas tento aproveitar um pouco. Não por querer ser mais do que sou o do que tenho mas é que me conecto com as coisas belas da natureza e com a música, o teatro, o cinema, bibliotecas, parques, museus. Meu distante subúrbio não me proporciona isso. Por causa das intervenções no centro da cidade, depois das olimpíadas, tem quinzenas que troco Copacabana pela região portuária revitalizada. Ali está lindo, tem muita história e muito samba na Gamboa e naquelas ruas da Lapa.

Ao longo dos anos venho economizando para, quando me aposentar, conseguir pagar um aluguel de uma kitinet em algum ponto da Zona Sul. Talvez consiga algo no Catete ou Glória, quem sabe até no Bairro Peixoto. Devo vender a casa pois não tenho para quem deixar e com esse dinheiro mais a pequena aposentadoria e as economias poderei terminar meus dias junto de Hermes e Tri - se eles não forem antes, o que é bem provável pela idade de ambos - no Rio de Janeiro dos turistas e da classe mais favorecida. O subúrbio e minha casa com quintal estarão em minhas últimas lembranças.

Mas, por enquanto, fico por aqui, no final da Rua 5. E no final deste texto. É noite de domingo, vai começar o Fantástico. A marmita já está na geladeira. As 10 desligo a TV antes do programa terminar. Preciso acordar às quatro desta segunda-feira.

Comentários

  1. Um exemplo comum, mas bem importante de um cidadão carioca me identifiquei em vários pontos...
    Principalmente pela Literatura e o Amos aos animais, verdadeiros companheiros.

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    1. Valeu pelo comentário e pela identificação com o texto, Gafa. Grande abraço!

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