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Em minha cidade (melhor dizendo em uma de minhas cidades, já que tenho o privilégio de me deslocar sempre para o litoral) não são muitas as pessoas que se interessam por Blues e Rock. Aliás desconfio que artes de forma geral não são o forte por essas bandas conservadoras, vide o resultado das últimas eleições na região. O paradoxo é que existem artistas conservadores e isso foge ao meu entendimento. Rock, por exemplo, é uma forma que em sua essencia sempre foi transgressora. Mas isso é tema para uma análise mais aprofundada.

Sexta e sábado teve um pequeno festival de Blues Rock, com boas bandas locais na área externa de um shopping. Uma excelente iniciativa patrocinada por produtores de cervejas atesanais e restaurantes. Aliás o desafio desses cervejeiros é servir a tal "loura" estupidamente gelada. Já fui a muitos desses eventos e me decepcionei com a temperatura da dita. Sem grandes expectativas, sobretudo com relação ao público que se faria presente, partimos para lá.

A surpresa e a alegria foi reencontrar amigos de profissão de longa data, agora aposentados da mesma forma que este escriba. Angelo já estava acompanhado de seu copo de 500 ml quando cheguei. A banda tocava "Baby Please Don’t Go" do para sempre genial John Lee Hooker: rapaz, tem muita gente do nosso time por aqui! 

Confirmada a informação, deixei de prestar atenção na banda e resolvi sair rodando pelo espaço para ver se encontrava alguém, já com o copo na mão (essa estava gelada, mas não no ponto ideal). O primeiro que vi foi o Djalma. 

- Há quanto tempo Marquinho! Como vc está? Rapaz nem te conheci com essa barba branca. Eu tava em casa e vim prá cá do jeito que estava vestido, olha só, camiseta furada e short largo, kkkk. Você está com quantos anos? Vai fazer 65 este mês?! Caramba, eu sou o mais velho desse pessoal, estou com 69! Boa ideia então, retruquei para ouvir mais uma gostosa gargalhada na sequencia.

Olhei para o lado, era o Ricardo (coração de leão). - Grande Marquinho Metamúsica, pessoa da melhor qualidade. Por onde andas? Eu estou bem, mas meu irmão morreu. Tava no bar e teve um ataque cardíaco fulminante. Foi do jeito que gostava, de copo na mão rodeado das amigas, ouvindo pagode. Estava com 64.

Já Carlinhos da Birosca estava sentado. - Caramba, você está muito bem Marcos, parece um garotão! Eu estou fulminado mas nem esquento. Primeiro caí de uma escada por pura teimosia, tive que fazer cirurgia no quadril, de molho por meses e mal estava recuperado descobriram um cancer no intestino. Tiraram meio metro de tripa. Agora já voltei à ativa mas não aguento ficar em pé por muito tempo. Ainda bem que dá pra ouvir rock e tomar umas sentado! Hahaha...

Mais alguns passos e me encontro frente a frente com o evangélico Ronam. Ué! Parou com a igreja? -Que nada, amanhã vou lá. Mas eu sempre fui do rock e da cerva, você sabe. Eu mudei foi de igreja, Agora estou em uma em que o pastor é mais esperto, hehehe. Se lembra do Isaque? Gente boa. Morreu de Covid. O sacana não quis tomar a vacina e não usava máscara. Até hoje não me conformo.

Continuei meu périplo, circulando por ali, em volta do palco. Deveria ter mais conhecidos. Ernesto estava em um canto, quieto como sempre, prestando atenção na música. Na mão uma Heineken sem álcool. Arregalou os olhos quando me viu, deu um sorriso e um abraço apertado emocionado. Sem álcool amigo Nesto? - Tô tomando Sertralina para a depressão, Bromazepam para ansiedade e Rivotril como S.O.S. Mas é sem álcool porque estou de carro, não tem nada a ver com essas vitaminas, kkkk! Na verdade eu tenho ficado quase o tempo todo na casinha da praia, cuidando de plantas, lendo e olhando o mar. Isso faz com que eu vá diminuindo aos poucos os remédios. E ainda faço academia!

Jaiminho segurou meu braço. Vai para onde rapaz, quantas saudades meu amigo! Tá sabendo que o Eric Clapton vem aí em setembro? O que, você conseguiu ingressos pra Bethânia e Caetano em agosto Marquinhos? Pôxa, eu não. Mas de qualquer forma não posso ir a tudo mesmo. Meu joelho está bichado e ando meio sem grana, estou vendendo minha querida Harley-Davidson. Quer comprar? Gostaria né? Mas sua situação está igual a de quase todos nós, dinheiro contado...

E assim foi aquela tarde noite memorável por causa desses encontros inesperados. Todos felizes com a chance de nos vermos. Todos com histórias de problemas familiares, de saúde, de perdas, de finanças. Mas também alegres por estarmos vivos, celebrando a existencia, relembrando com saudades daqueles que se foram prematuramente, mas pontuando histórias hilárias vividas com eles.

Uma geração procedente da Escola Técnica Federal, de fins dos anos 70 e início dos 80. Fomos moldados para encarar os desafios e ao mesmo tempo para celebrarmos a amizade e as brincadeiras irreverentes bem humoradas com os colegas. E isso permanece até hoje, mesmo com as intempéries que atingem cada um de forma diferente, em diferentes graus. Levamos essa forma de encarar as amizades para a Patrobras onde todos orgulhosamente trabalhamos por mais de 35 anos, seja no mar, seja em terra.

Agora, aposentados, ultrapassada a barreira da chamada terceira idade, vamos tocando o barco. Navegando por mares às vezes revoltos mas cada um de nós com a sua própria forma de buscar controlar a embarcação. Seja voltando a trabalhar, estudando, escrevendo, cuidando de netos, de plantas, equilibrando contas, contando com um auxílio espiritual, bebendo um vinho, um drink ou uma cerveja, utilizando alguns tarjas pretas, remédios para a pressão e diabetes, ajudando e contando com familiares, revendo e convivendo com amigos inesquecíveis. Esperamos ir bem além dos 80, quem sabe 90 com qualidade, seguindo as pegadas de gente como Mick Jagger e Paul McCartney. Aliás, a música ajuda. Mas, pelo exemplo dos que já se foram antes, sabemos que não temos controle de nada. Celebremos com humildade e gratidão cada momento por aqui. Com arte, pois ela existe porque a vida só não basta, como dizia o poeta Ferreira Gullar.

P.S.: E lá se foi o Ziraldo, aquele que nunca se aposentou de ser uma pessoa maravilhosa.

Comentários

  1. É meu irmão tamos cascudos mesmo, mas é bom pra termos mais tempo pra encontrar os amigos , especialmente num show de Blues, que venham mais 50 anos no mínimo pra gente.

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  2. Grande Marcos. Grande texto. Grande abraço

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  3. Sempre muito bom rever os amigos, apreciar uma boa cerveja e escutar um rock do bom! Hoje o céu ficou mais alegre com a chegada do grande Ziraldo! Grande abraço Marcos!

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    1. É verdade. A essência de nossa existência passa por aí. Grande abraço!

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  4. Excelente crônica. Texto tão verossímil que me fez ver as expressões das pessoas descritas durante seu percurso pelo show. Parabéns!

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    1. Obrigado por ter lido e pelas palavras que são incentivadoras. Abraço!

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