Kate Bush, O Morro dos Ventos Uivantes e a Pandemia

Com advento da pandemia muitas coisas mudaram. Por exemplo eu usar esta palavra, "advento", para citar a crise que estamos metidos. Acho que estou é tentando iniciar a crônica com um termo mais leve. É que basta assistir ao noticiário diário para bater uma certa opressão. Portanto vamos conversar sobre literatura e música. Se bem que não se possa dizer que haja muita leveza no livro que me animou a escrever neste sábado de verão.

Estava dividindo com minha esposa as tarefas de faxina caseira ouvindo uma das minhas dezenas de playlists. Impossível fazer qualquer coisa sem um fundo musical alimentando a alma, convenhamos. Ao higienizar o vaso sanitário com uma mistura de Pato Purific Gel Marine, cloro ativo e Casa & Perfume lavanda (desconfio que exagerei nesta combinação) tocou a lindíssima e estranha canção "Wuthering Heights". Não vi nenhuma relação entre os fatos mas narro aqui apenas como segundo parágrafo da crônica e para que minha meia dúzia de amigos leitores entrem no clima do momento. Não do banheiro. Que ficou bem limpo, diga-se de passagem. Cheirando a lavanda. Mas será que é o caso de banheiro ficar cheirando a lavanda? Tema a ser discutido em altas rodas intelectuais, depois que a pandemia acabar.

O título pode ser traduzido como O Monte dos Vendavais ou ainda Colina dos Vendavais, no entanto o mais correto é denominá-la com os mesmos termos usados na tradução do livro que lhe deu origem: O Morro dos Ventos Uivantes.

A cantora e pianista inglesa Kate Bush a compôs com apenas 18 anos, depois de ver uma das versões cinematográficas da obra (provavelmente a de 1970). Foi então atrás do livro e se inspirou para criar a canção. Ela foi inserida em seu primeiro disco, The Kick Inside, de 1978.

Foi provavelmente o primeiro livro que li - isso também pelos idos dos anos 70 - que consta em listas dos grandes clássicos da literatura universal. 

Desconfio que os críticos literários, sobretudo no início, tenham tido uma certa dificuldade em classificá-lo como "obra-prima". É apenas uma linda história de amor. Quer dizer, não só isso. É também um drama de muitos sofrimentos. E uma trama de ódio e vingança. Com elementos sobrenaturais e de tragédia grega. Ou seja, bom roteiro para uma série barata da Netflix ou novela das nove.

Kate Bush
A bem da verdade já teve dezenas de tentativas de adaptações no cinema, teatro, novelas, séries e musicais. Isso desde os anos 20 do século passado. Não vi tudo mas acho ser o tipo de obra que encontra sua força plena apenas nas páginas originais. Leiam e saberão. Só depois assistam a alguma dessas adaptações, caso não tenham visto ainda, óbvio.

Não vou me estender tentando resumir a história aqui pois a certeza de insucesso é de aproximadamente 110%, pelos meus cálculos mambembes. Mas me permito reproduzir parte de um ótimo texto do crítico e escritor Oscar Nestarez, publicado na revista Galileu: "Na tradição literária, existem personagens que parecem ter nascido para a eternidade. Profundos, complexos, enigmáticos, assustadores e sobretudo fascinantes, vão crescendo conforme o tempo passa, projetando suas sombras sobre os anos, as décadas, os séculos. Por vezes, essas sombras avançam sobre a própria história a que pertencem; com efeito, são personagens que se tornam maiores do que a narrativa de que participam. Esse parece ser o caso de Heathcliff e Catherine Earnshaw, de O Morro dos Ventos Uivantes. (...) Pois O Morro dos Ventos Uivantes é, antes de tudo, uma história de transformação do caráter humano — para pior. Quase todos os personagens são expostos a alguma forma de sofrimento: vivenciam a inveja, o ciúme, a rejeição e a morte, o que enfraquece suas virtudes. Uma vez despojados dos freios do decoro e do equilíbrio, lançam-se impetuosamente rumo à vingança e à destruição." (Em "O Morro dos Ventos Uivantes: quando a literatura é do tamanho da vida").

Emily Brontë
Publicado em 1847 pela discreta Emily Brontë - irmã de duas outras escritoras - foi sua única obra, tendo falecido no ano seguinte, aos 30 anos. Sua história de vida e observações acerca das pessoas parece ter se refletido nesta densa história que vem inspirando tantos artistas.

Portanto voltemos à Kate Bush. Sua forma de compor fugia aos padrões da música pop da época, bem como a sua voz e estilo de interpretar. À primeira vista e audição a sensação que temos é de estranhamento. Fato que é reforçado ao traduzirmos a canção, sobretudo para quem não conhece a obra. Na época meu conhecimento do idioma da rainha era sofrível - não que tenha melhorado muito agora - mas logo percebi que tratava-se de referência ao livro que havia lido há pouco tempo.

Da mesma forma que o livro, o tempo fez com que esta canção fosse reconhecida como uma das mais interessantes da Inglaterra, constando das listas de melhores canções pop de todos os tempos. Kate tem hoje 62 anos e continua trabalhando em sua carreira musical.

Outros músicos tiveram a mesma inspiração, como a banda de Rock Progressivo Genesis, que titulou seu disco de 1976 de "Wind & Wuthering", sendo as dramáticas canções "Unquiet Slumbers for the Sleepers...", "...In That Quiet Earth" e "Afterglow" como ponto alto da referência à história criada por Emily Brontë.

Talvez não seja um livro tão recomendado assim para ler nestes tempos estranhos. Por outro lado, ver em uma obra de ficção do século XIX personagens tão imersos em uma realidade perversa e as respostas que dão às suas próprias desventuras, pode ser revelador dos caminhos que pode percorrer a alma humana. E isso vale para qualquer época e situação. Por vezes não é fácil entender o tipo de humanidade de cada um. Isso se for possível ou recomendável tentar entender.

Já se vai o fim da tarde de sábado. Kate no momento não canta. A GloboNews avisa que estamos em um dos piores momentos da pandemia. A chegada da vacina está lenta. Vou preparar um drink, escolher uma playlist e recomeçar a ler "O Morro dos Ventos Uivantes". Pensando bem, o drama de Heathcliff e Cathy é bem menos caótico do que o noticiário atual.  

Comentários

  1. Olá Marcos!
    Adoro seus textos. Gostaria que escrevesse mais vezes.
    Eu amo essa música mas não sabia dessa história do livro. Fiquei encantada. Vou procurar o livro pra ler. Obrigada!

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    1. Obrigado Inês. Muita gente realmente não sabe sobre a relação desta música com o livro. Que bom que você se interessou por ler. Vai gostar. Abraço!

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  2. No meu caso o contrário. Conhecia o livro mas a música não. Do Genesis, claro..Mas não sabia que era inspirado no livro. Tem tudo a ver mesmo, o título Wind & Wuthering. Ótimo cronista!

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    1. Na verdade, com relação ao disco do Genesis, eu só descobri quando fui fazer uma pesquisa para a crônica. Já desconfiava mas não tinha certeza

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