Histórias Direto do Exílio em Casa

Justo agora, com tanto tempo livre nesta quarentena, percebi que não tenho me animado a escrever. Curioso. Por exemplo, poderia estar começando aquela autobiografia que planejo há anos. Que nada.

Andei tentando entender. Normalmente escrever é uma necessidade e um prazer. Bem, é verdade que muitos ótimos escritores já disseram que escrever é uma grande luta com as palavras, muito desgastante. Estão certos. Mas é bom lembrar que eu não sou escritor, muito menos ótimo.
O que está havendo então? Pode ser a preocupação com essa ameaça que nos espreita a todos. E acho que minha preocupação não é tanto comigo mas com aqueles a quem amo e a tantos desconhecidos que tem sofrido muito com esta coisa surreal.

Há também o fato do ataque, via redes sociais, de mensagens, textos, videos, memes, etc. em número absurdo. Nesta linha de raciocínio somente uns 17 leitores teriam ânimo para ler uma crônica que não sabe muito bem onde quer chegar. Pensando assim, é provável que isso seja um fator a mais no desânimo de construir essas tais mal traçadas linhas.

Em tese - melhor dizer como fato - apesar do exílio forçado em menos de 150 m² de área construída e de um quintal que não é lá nenhum latifúndio, há de se considerar que meus dias tem sido bem atarefados. Tenho a sorte de gostar de estar em casa com a família. De ler, ouvir música, ver filmes, cozinhar. E de escrever. O que não tenho feito, como já testemunhado.

É possível que três ou quatro almas de boa vontade tenham chegado até este ponto da leitura e estejam perguntando: mais que diabos você tem feito afinal, dá pra detalhar mais? É que eles (vocês) tem boa vontade mas paciência tem limites não é mesmo?

Vamos lá, com um exemplo. Há dois séculos (sou do grupo de risco) venho adiando uma arrumação dos meus CDs, discos de vinil e livros. É uma organização necessária pra eu saber onde está algum item que eu me lembre repentinamente e não precise futucar os espaços durante horas pra achar.

Estou tentando fazer isso nessas tardes bonitas de outono, que vejo passar através das minhas janelas, fotografando com o celular as mudanças no céu. Uma forma de me conectar com a natureza lá fora.
Enquanto organizo estantes a música preenche o ambiente e me desligo de tantas notícias drásticas.
E aí o tempo passa. Sobretudo quando faço umas descobertas inusitadas.

Por exemplo eu não sabia que eu possuía um CD em que o Lulu Santos canta apenas músicas do Roberto Carlos. Aliás eu nem sabia que ele tinha gravado esse disco!
Achei também um LP do saxofonista Coleman Hawkins, gravado em 1945 e lançado no Brasil pela Capitol Records em 1988, data em que o comprei na extinta e saudosa Caiana Discos do meu amigo Paulo André. O detalhe é que o disco ainda está lacrado, 32 anos depois! Decidi que vai permanecer assim, intocado, como uma relíquia de bons tempos.

No que refere a livros a descoberta também é interessante.
Tenho a grata oportunidade de ter como vizinho o escritor, teatrólogo, jornalista, compositor, músico, pesquisador, etc, Winston Rangel. Estava conversando com ele esses dias sobre a rica história da cidade, desde os tempos do Brasil Colônia. Entre muitas coisas comentou sobre um grande livro escrito por um jornalista amigo dele, já falecido, que era um tratado bem desenhando sobre as histórias de Campos dos Goytacazes. "Eu acho que tive esse livro mas não me lembro de ter lido", argumentei. Já havia ouvido falar do autor quando acompanhava a imprensa campista nos idos dos anos 70, depois que cheguei nesta planície ainda pré-adolescente, vindo da Zona Oeste do Rio, que naqueles tempos era denominada Zona Rural do Estado da Guanabara.

Pois bem, nessas organizações, lá na parte de trás de uma das estantes, descubro o referido volume de "Na Taba dos Goytacazes", da série "Biblioteca de Estudos Fluminenses". Foi a primeira surpresa. A segunda foi que, ao abrir, estava lá uma dedicatória do autor: "Ao amigo Marcos Cardozo, abraço do Hervé Salgado Rodrigues, em 15/09/1988"! Eita! Deve ter sido uma noite de autógrafos na livraria mais antiga do Brasil em atividade, "Ao Livro Verde". Compareci, comprei e pedi que autografasse. Não lembro de nada disso. Mas o livro está aqui e agora comecei a ler, com um certo atraso, reconheço.
E eis que logo no início mais uma surpresa: meu vizinho amigo que me lembrou do livro é citado logo na página 30 (o volume tem quase 400 páginas): "(...) A cena foi reproduzida com rara beleza plástica pelo "Auto de Posse da Villa de Sam Salvador dos Campos", escrito pelo talento do teatrólogo Winston Churchill Rangel, em 1977 e encenado no auditório da Escola Técnica".
Mais uma coincidência é que em 1977 eu estava na Escola Técnica fazendo o meu curso de Edificações. E no momento estou tentando me lembrar se assisti ou não. Como disse, estou no grupo de risco e a memória não anda lá essas coisas, pois nem de discos e livros que tenho estou me lembrando...

Por essas e outras, os dias de quarentena passam e eu não sento ao notebook pra escrever. Só pra fazer as contas dos boletos à pagar. Como dizem os memes - referências filosóficas nesses tempos estranhos, a despeito de Umberto Eco - esses não entraram no Lockdown da cidade.

No mais é torcer para que tudo isso passe logo, rezar para que menos vidas se percam (inclusive as nossas) e que esse "desgoverno" instalado em Brasília pelo menos não atrapalhe mais do que já tem conseguido fazer. Eu posso até ser um tanto quanto fora de ordem mas um presidente e seus ministros não tem o mínimo direito de ser um bando de loucos de mau caráter.

Acho que me refugiar em livros, música e afins é também uma autoproteção psicológica.

E, como diz a Regina Giannetti em seu ótimo podcast Autoconsciente, que vocês estejam bem!

Comentários

  1. Grande Marcos Metamúsica! Seus textos são ótimos! A sua diferença é conseguir capturar o leitor com seu estilo mesmo escrevendo sobre coisas simples do dia a dia. Nisto você também é um mestre, além do grande conhecedor de música que é. Espero que faça sua autobiografia. Vai ser um livro ótimo de ler! Grande abraço do seu fã!

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    1. Olá Jefferson! Muito obrigado pelas palavras e pelo incentivo. Vamos ver se pelo menos inicio o livro... Grande abraço!

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  2. Alice in Wonderland19 de maio de 2020 às 19:51

    Olha eu aqui de novo! Sinto falta de suas crônicas. Também estou trancada em casa e amei o que escreveu. Me inspirou e me animou. Obrigada. Bjs.

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    1. Obrigado Alice. Bom ter você por aqui. Que bom que gosta dos meus escritos! Bj

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  3. Muito bom Marquinho, também tenho muita coisa para organizar mas os dias passam e nada. Aqueles "17 leitores" foi de propósito né? Melhor seria 13.
    Um abraço do amigo Paulo Maurício.

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    1. Oi Paulo! Bom ver você por aqui! Obrigado!
      Você tem razão. Melhor seria 13... rsrs... Mas foi coincidência, nem tinha me dado pelo fato. É que essa expressão "meus 17 leitores" é utilizada por cronistas que não acreditam que tem muita gente lendo o que ele escreve. Ainda não consegui descobrir a origem dessa escolha (17). Acho que algum escritor usou e se popularizou.
      Abraço.

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  4. Suas crônicas são excelentes! Escreva sempre!

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