O Fim da Infância

Eu estava com uns 12 anos. Rua 9 (depois, Rua Aratimbó, que significa “tempo nebuloso”, termo indígena).
Infância de menino pobre mas feliz no subúrbio do Rio que, naquele tempo, início dos anos 70, era chamado de Zona Rural, atualmente Zona Oeste. Bairro de Cosmos.
Casa pequena, de telhas francesas que nada tinham de europeias, era apenas um nome chique mas que não impedia goteiras quando vinham as tempestades de verão.
Quintal grande com um poço, pequeno lago de cimento para os patos, galinheiro, pés de jabuticaba, manga, araçá, goiaba, tangerina, carambola e amora.
Em frente, uma extensa área sem casas. Lugar aberto, terra de ninguém. Ou melhor, terra nossa, dos meninos da minha rua. Árvores frutíferas, campos de futebol de várzea - sem grama, claro. Lugar pra correr atrás de pipas e balões juninos, bola de gude, amarelinha, subir nas mangueiras. Tinha até pique nas árvores! Caí uma vez e já contei essa história mas até hoje, relembrando, me pergunto como nenhum de nós, crianças alucinadas, teve um acidente mais sério.
Acho que é por causa desse histórico que não vejo problemas em subir numa altíssima escada de marinheiro que tem aqui em casa e que leva ao meu telhado. Minha família me dá bronca por isso. O problema é que não tem guarda corpo. Ok, estou com 60 também. E tenho de tomar a injeção contra gripe.
Voltando às reminiscências, desde que nasci, aquela Rua 9 era a minha vida, o meu espaço, a minha infância.
Em 1972 meu pai precisou mudar de cidade, retornar às origens em Campos. Na verdade ele e minha mãe eram de Pureza, distrito de São Fidélis, pequena cidade vizinha.
Fiquei feliz pois gostava de viajar em um trem de cor metálica, como aço inox, o Litorina. Tinha também o "noturno" que, como o nome diz, fazia o trajeto ao longo de toda noite, parando em dezenas de municípios. Era menos glamoroso que o Litorina mas as passagens eram mais baratas.
As bagagens iriam em uma Kombi de um tio e nós seguiríamos de trem.
Já em Campos, morando a princípio na casa dos avós, era só alegria para mim e meus irmãos.
Minha mãe não tinha viajado. Seguiria alguns meses depois, quando tivesse alta de sua internação em um hospital do distrito de Corrêas, Petrópolis, onde se recuperava de tuberculose.
Se, nos primeiros tempos, o sentimento era de férias fora do meu lugar, fato raro para um menino pobre, com o tempo algo que me soava estranho começou a acontecer.
A nova rua, tão distante de minha origem, parecia vazia. Não havia aquele imenso espaço livre. Os amiguinhos que eu conhecia desde tenra idade não estavam por ali. E eu não parecia querer conhecer outros. E não tinha pique bandeira, nem esconde-esconde, nem futebol no final da tarde.
Aos poucos fui tomando consciência que aquilo não eram férias e que o passeio de trem, que eu havia dado a maior importância, efetivamente era uma armadilha mental que eu provavelmente havia preparado para mim mesmo. Não veria mais meus amigos, não ficaria mais perambulando de casa em casa da vizinhança que eram também as minhas casas. Os pais dos meus amigos não seriam mais meus pais também.
O sentimento de perda e saudades bateu forte no peito sem que eu entendesse bem o que era aquilo. Saudades das pessoas, do lugar, da infância que se despedia. E todos os dias, trancado na hora do banho, eu chorava secretamente. Mas logo me recompunha, não comentando com ninguém, não demonstrando nada, apenas aquele conhecido nó preso na garganta daqueles que não se propõem a demonstrar seus sentimentos de dor. Afinal eu era um menino de 12 anos... Acho que por isso até hoje tenho um certo bloqueio para as lágrimas.
Com o tempo e a entrada na nova escola, aquele sentimento foi se dissipando. E, embora outros amigos e brincadeiras viessem, sempre me senti meio deslocado, fora do meu lugar. Como que, de forma inconsciente, esperando um eterno retorno aos anos 60, da infância suburbana carioca.
Só fui retomar esse sentimento de pertencimento pleno a uma comunidade quando, já aos 16 anos, entrei na Escola Técnica Federal de Campos. Mas isso é outra história.
Embora este texto explique bem o seu título, é fato que há também outro motivo. Existe um livro do grande escritor de ficção científica Arthur C. Clarke (o mesmo autor de “2001: Uma Odisseia No Espaço”). Nele a humanidade é invadida “pacificamente” por alienígenas, que impõem novas regras e a humanidade dá um salto em sua qualidade existencial. Mais ou menos isso com um fim que surpreendente.
A expressão “o fim da infância” pode significar de certa forma também os desafios que estamos enfrentando agora. O fato de me lembrar hoje daquele momento impactante da minha vida e do livro que apresenta mudanças obrigatórias na forma de viver, é um sintoma de uma expectativa que eu provavelmente estou tendo do que há de vir depois deste momento conturbado de pandemia e quarentena.
Viveremos para ver.
Oremos por todos. Por recomeços. Por novas infâncias de qualquer idade.

Comentários

  1. Essas memórias são seu ponto forte, você que escreve tão bem sobre tudo. E não esqueço do inesquecível Metamúsica. Quando vai publicar seu livro? Estamos aguardando! Bj

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    1. Obrigado Lina (que tem um ótimo sobrenome). O livro começa a ficar nos planos... Vamos ver.

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  2. Apesar de transitar por uma geração diferente, me identifiquei imensamente com o trecho que fala da nossa terra vasta Zona Oeste. De todas as brincadeiras e subidas em árvores para catar frutos. Das famosas ruas com números. Ótima reflexão, infância época que marca e molda as nossas vidas.

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    1. Obrigado pelas palavras Will, você que tem suas origens também na Zona Oeste do Rio. Sei que também tem suas boas lembranças daquela época e isso nos acompanha por toda vida. Grande abraço;

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  3. Marcos, eu, você, e tantos outros com as mesmas (ou muito próximas) memórias aqui desenhadas por mãos sensíveis como as suas, puderam ter o privilégio de escrever, e assim, viver a infância tão linda e poeticamente, como descreveu nos seus trechos expostos. Havia tempo, lugares, infância, brincadeiras de verdade etc., enfim, havia o Sonhar.
    Infelizmente, não vejo mais possibilidades desse tão belo cenário ser repetido por grande parte das crianças, adolescentes e até mesmo, por jovens de hoje. Mesmo aqueles que vivem nas zonas rurais. Tenho refletido muito sobre vários fenômenos pós-modernos que afetam e transformaram de maneira pujante, o nosso entorno circundante, e que, certamente, também têm me impactado. Mais uma vez agradeço por suas palavras que, novamente, me transportaram a uma outra dimensão temporal. Abraço.

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    1. Palavras sábias e reais, amigo(a). Efetivamente é fato que o tempo de hoje, com suas complexidades, apresenta um desafio difícil de ser decifrado, bem como suas consequências. Para nós, resta-nos essas recordações, tesouro de nossa linda juventude. Abraço;

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