Tempos Modernos: Eu Me Recordo

Na minha infância eu colecionava gibis, histórias em quadrinhos. Falo dos distantes anos 60. Era uma luta para conseguir novos exemplares. Demoravam um mês para chegar nas bancas as novas e poucas edições dos super-heróis.
No rádio de válvulas as mesmas músicas de sucesso tocavam durante meses e era praticamente a única forma de termos contato com os lançamentos do exterior.
Dois exemplos de como a vida corria mais lentamente, enquanto aproveitávamos o tempo livre para brincar nos amplos ambientes externos. Os adultos dedicavam uma parte do dia para conversar com a vizinhança. Não tanto sobre as últimas notícias nacionais e internacionais que, afinal, eram poucas. Assuntos banais do dia a dia do bairro. Em minhas recordações eram vidas em slow motion.

Corta para 2020. Minha nova década de 60: 60 anos.
Ainda gosto de gibis, mas não leio mais. Rádio, eventualmente, nos deslocamentos de carro.
Ainda tenho milhares de LPs e CDs que faço esforço para ouvir tentando evitar a tentação das dezenas de playlists que fiz no Deezer e Spotify e que também não escuto como gostaria.

A lista de livros não lidos nas estantes continuam a reclamar: "porque começou a ler cinco livros simultaneamente se não dá conta de um?".
Estou tentando ver todos os filmes indicados ao Oscar antes da premiação. Alguns vi no cinema, outros na Netflix e tem mais alguns no pendrive. Provavelmente não conseguirei ver até fevereiro, data da premiação, pois tem aquelas séries que não terminei ainda e os programas da TV por assinatura gravados.

Olho o Gmail, os grupos do WhatsApp, do Telegram, do Facebook, fotos no Instagram e mensagens dos que sigo no Twitter: tudo acumulado.

Não posso deixar de saber o que anda acontecendo na política, na economia, nas relações internacionais. O Notebook, o Smarthphone e a TV me mandam essas notícias e é bom que eu veja e leia. Diariamente. Várias vezes.

Que bom essa evolução tecnológica que me permite saber tudo o tempo todo, aos 60 anos.

Resolvo largar alguns minutos o computador onde escrevo - quer dizer, digito - essas mal traçadas linhas (mas geometricamente bem retas) e vou até à rua. Está vazia neste final de tarde. Quase uma rua fantasma. A não ser por um pequeno grupo sentado em umas cadeiras em frente à uma casa, o que quase me fez lembrar minha infância, não fosse pelo fato de todos estarem olhando os celulares, provavelmente mandando mensagens uns para os outros.

Olho pro céu e ele me parece estranho. Que estranhamento seria esse? Algo sobrenatural que não consigo decifrar? Após alguns instantes me lembro que há muito tempo não olhava pra cima, simplesmente olhar o céu, sem pressa. Outra vez a infância: ficava horas imaginando as diversas formas que as nuvens desenhavam. O livro de estreia do escritor José Cândido de Carvalho, década de 30, chama-se "Olha pro céu, Frederico!". Poderia adaptar para "Olha pro céu, Marcos!".

De volta ao Notebook fico imaginando sobre essas exigências tecnológicas onde o presente parece não estar mais presente. Ou, em outras palavras, como dizem alguns coaches e monges budistas (por mais estranho que isso pareça), não conseguimos estar verdadeiramente no nosso presente que, afinal, é a única coisa que realmente existe: o instante de agora.
Muita coisa para ver e saber. Tudo fragmentado. Só dá tempo de ler o primeiro parágrafo, ouvir uma música do disco, ver o primeiro episódio da série, não deixar aquele carro entrar na minha frente pois estou com mais pressa que ele, fazer várias coisas do trabalho ao mesmo tempo, estudar várias matérias na mesma hora...

É mesmo boa essa evolução tecnológica que me permite saber tudo o tempo todo, instantaneamente, aos 60 anos? Nesta fase da vida há de se começar a selecionar com mais rigor como usar o tempo, sabendo que esse é um conceito abstrato, inventando pelo ser humano. Pelo menos a medição dele.
No entanto não é conceito abstrato a finitude da vida. Essa fragmentação das milhares de informações e exigências diárias definitivamente não contribui para que estejamos presentes em nós mesmos. Afinal, o tempo urge. Parece óbvia e, paradoxalmente, estranha essa afirmação. Estamos sempre voltados para o exterior.

A percepção da veloz passagem do tempo é a mesma que nos faz dizer que "não temos tempo pra nada". É a mesma que não nos permite sentir com plenitude a nossa própria existência, o que é preocupante quando se está na fase da vida categorizado pela ONU como "pré-idoso" (depois vem "idoso jovem" e "idosos de idade avançada"). Mas isso vale para qualquer época da vida. Fosse eu mais jovem provavelmente estaria questionando mais ainda. Mas a juventude (e diria também a infância) se desenvolveu sob esse signo veloz e provavelmente já se adaptou, embora existam controvérsias por parte de cientistas, filósofos e místicos.

O fato é que tenho me debruçado sobre este tema, no sentido de tentar voltar, pelo menos parcialmente, à velha infância: olhar mais o céu e menos as toneladas de informações e atividades diárias. Convido meus 17 leitores a também pensarem sobre isso.

Coincidentemente enquanto escrevo começa a tocar em uma das minhas playlists (que eu intitulei de "Seleção MEC FM") o tema principal do filme "Amarcord", de Fellini. É de 1973 e a trilha é do Nino Rota. A coincidência é que a incrível importância de "Amarcord" acabou criando um neologismo na língua italiana, significando "recordar com nostalgia", pois vem de a m' arcord (eu me lembro), no dialeto da região de Emilia-Romagna, da infância de Fellini. Tenho uma leve impressão que tenho pontos em comum com o grande Federico. Mas não sua genialidade, é óbvio ululante, como diria o Nelson Rodrigues.

Comentários

  1. Ótimo texto Marcos! Sempre leio tudo que publica e adoro! Me fez lembrar de minha infância e pensar sobre tudo que disse. Obrigada! Bjs

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    1. Obrigado Maria Inês. Que pense bastante sobre isso. Realmente vivemos cada vez mais o passado, o futuro e as coisas exteriores. Temos que nos lembrar de nós no agora. É esse o desafio. Bjs

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