A Canção do Milton e o Meu Tio Negro


Existia uma publicação de origem americana muito popular no Brasil ao longo de mais de cinco décadas chamada "Seleções Reader´s Digest". Falei "existia", no passado, mas pode ser que ainda seja encontrada em bancas de jornais. Eu era um rato de banca, comprando diversas revistas por semana. Hoje sequer entro nelas. Nas poucas que existem, desaparecidas que estão sendo, da mesma forma que as lojas de discos.
Focada em matérias leves, abordando diversos temas do dia a dia, em auto-ajuda, talvez hoje esteja fora de sincronia com esses tempos estranhos.
A revista fazia algumas promoções para assinantes. Por exemplo, a possibilidade de adquirir algum item exclusivo a um preço convidativo.
Numa dessas encomendei uma caixa com cinco CDs do Milton Nascimento chamada "Uma Travessia Musical", contendo o principal de sua obra dos anos 70, incluindo gravações inéditas. Isso deve fazer uns 20 anos. Mas não tenho certeza. A marcação da passagem do tempo anda meio fugidia para mim.
Guardo com carinho a caixa que ainda veio com um livreto explicativo de 90 páginas.
Estava esquecida na estante e hoje resolvi ouvir um pouco de suas lindas canções.
O Milton está fazendo uma turnê nacional que eu até tentei adquirir ingresso mas estavam esgotados. Pena. Desconfio que essa pode ser sua última tour, como está acontecendo com diversos dos meus ídolos musicais que ultrapassaram a faixa dos 75 anos. Meus heróis estão envelhecendo junto comigo. Achei que eles nunca ficariam idosos a ponto de não aguentar mais o tranco que é viajar meses na estrada e no ar para fazer shows.
Uma das muitas canções do Milton que me comove especialmente chama-se "Morro Velho". Esse título se refere às montanhas de Minas e não ao verbo morrer. Se assim fosse seria uma boa contraposição ao rock do Black Sabbath, "Die Young".
Conta a história de dois amigos de infância, criados juntos na grande fazenda: "Correndo pela estrada atrás do passarinho, pela plantação adentro, crescendo os dois meninos, sempre pequeninos".
Ocorre que um é branco, filho do dono da fazenda. O outro é preto, filho de um dos empregados: "Filho do branco e do preto...".
E um dia o amiguinho da casa grande parte para para estudar em escola na capital. Mas avisa: "Não esqueça amigo, eu vou voltar". E volta depois de muitos anos. Mas quando retorna já é outro. Casado com uma "sinhazinha moça", já com título de doutor. A música conclui: "(...) e agora na fazenda é quem vai mandar... e o seu velho camarada já não brinca, mas trabalha".
Um retrato rural e urbano da história deste Brasil. Belo na canção do Milton, triste em sua realidade da desigualdade de oportunidades.
Ao ouvir "Morro Velho" me veio à memória um tio que vi poucas vezes em minha tenra infância lá no subúrbio do Rio. Tio Vicente. Pouco sei ou me lembro de sua história. A primeira vez que apareceu lá em casa eu devia ter uns seis anos. Meu pai me apresentou: "pede 'bença' ao seu tio Vicente, meu irmão". A curiosidade infantil me fez olhar com desconfiança. Tio Vicente tinha uma linda pele negra, daquelas que brilham ao sol e meu pai não tinha nenhum traço de qualquer morenice tropical. Era bem branco. "Ele foi criado comigo, é meu irmão lá da roça, de Pureza, em São Fidélis".
Em minha memória afetiva ele era uma das pessoas mais calmas, gentis e atenciosas que conheci. Acho que morava em uma comunidade bem carente mas seu sorriso sempre presente não demonstrava externamente maiores preocupações. A história dele não era a mesma de "Morro Velho" pois meu pai também era pobre e teve poucas oportunidades. Mas desconfio que deve ter tido muito mais empecilhos por conta de sua cor.
Nunca consegui saber detalhes de sua vida e tempos depois alguém me disse que ele havia morrido. Justamente quando, um pouco mais velho e já tendo noção das coisas, eu planejava procurá-lo. Minha impressão é de que perdi a chance de conhecer mais a fundo uma pessoa que talvez fosse uma das mais enriquecedoras no meu mundo infanto-juvenil.
"Morro Velho" me emociona por me fazer lembrar dele e do carinho que meu pai tinha pelo seu irmão de criação e de coração, que para ele era também irmão de sangue, e que - apenas por acaso - tinha uma cor de pele diferente da dele. Acaso este que não significava absolutamente nada em seu amor fraterno.
Ao ouvir a canção imagino meu pai (que também já se foi) e o tio Vicente "correndo pela estrada atrás do passarinho, pela plantação adentro, crescendo os dois meninos, sempre pequeninos".

Comentários

  1. Olá Marcos. Ainda bem que recebo aviso das atualizações do seu blog pois você demora a publicar o que é uma pena. Estou sempre relendo suas crônicas mais antigas que posta aqui. Neste domingo fui surpreendida por esse emocionante relato que me emocionou muito. E eu nem conhecia essa linda música do Milton Nascimento. Nesta época tão difícil que atravessamos é muito bom ler textos tão emocionais e confessionais como este. Faz nos lembrar de nossa humanidade, tão perdida nesse caos atual. Obrigada. Deus o abençoe. Beijos.

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    1. Muito obrigado por ser uma frequente leitora deste humilde espaço, M. do Rosário. Na medida do possível estarei publicando de uma forma mais contínua por aqui. Bjs.

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  2. As vezes penso ate que os tempos de calmaria e curticoes nas tardes de sabado foram um brevissimo sonho!
    Ler vc, Marquinho, eh sempre um frescor a ventilar a mente... suas letras e paragrafos sao um descortinar das trevas!
    Mantenha-se conosco, caro amigo.

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    1. Grande amigo Felipe. Através de você e do seu fantástico blog foi que adentrei a este universo. Agradeço suas gentis palavras e, como dizem, "tamo junto". Vamos em frente, enfrentando essas tempestades. Grande abraço!

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  3. Oi Xará! Como sempre, ao visitar suas palavras, você me redesenha sentimentos que vêm vestidos de recordações queridas de pessoas e lugares que o tempo já levou para outras dimensões. Especialmente, num dia como esse, meio morno, sem as correrias de sempre, em que pude parar um pouco para rever imagens e escutar músicas que também já estavam guardadas, ou talvez, adormecidas. Fez-me lembrar de algo que escrevi, já faz um bom tempo, sobre uma pessoa ímpar em minha vida; que muito me ensinou sobre a polissemia da vida, e que muito encantou a minha infância. Agradeço mais uma vez por fazer esse espaço ser mais humano. Abraços.

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    1. Obrigado pelas belas palavras e pela participação tão especial neste espaço, caro amigo.
      Fico feliz que minhas recordações e impressões despertem sentimentos e lembranças semelhantes nos estimados leitores. Vamos em frente, com nossas memórias e vivências. Grande abraço!

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