A Lutadora

Estava sentada na sala comum da casa de repouso para idosos.
Assistia pela TV a uma luta de Judô das Olimpíadas do Rio.
Tentei precisar sua idade. Impossível. Já devia saber disso. Não consigo nunca acertar a idade de mulheres. Sempre erro para menos. Ainda bem. O contrário seria no mínimo indelicado.
Mas devia ter entre 75 e 80. Tento aqui, mas sei que devo cair na minha citada incapacidade para isso.
Estava vestida com uma simplicidade elegante. O tom claro de um tecido suave combinava com o a cor da pele, que obviamente continha as marcas de suas histórias.
Maquiada discretamente, nem o batom nem o pó compacto eram inadequados: pelo contrário, cumpriam sua missão de manter o belo espírito feminino vivo. O mesmo dos brincos, colares, anéis e pulseiras. E dos cabelos encanecidos.
Seu interesse no Judô despertou minha curiosidade. De forma vivaz me disse que na juventude havia lutado a arte marcial e que adorava ver combates.
Seu marido havia sido faixa-preta.
Saudades dele? Sim, muita. Foi casada por 40 anos, até que um infarte o levou.
Deve ter sido bom esse convívio de tanto tempo...
Sim. Ele era muito bom.
No entanto, a ex-lutadora me advertiu: "mas não pense que fui santa".
O Judô a apresentou a homens irresistíveis e ela não resistiu. Nem fez força para isso. "Ainda bem", me disse. Senão estaria arrependida agora.
Mas e o seu marido?
O que tem ele?
Acha que foi justa?
Não me entendeu. Disse que a vida tem de ser vivida de acordo com o momento. "Ele deve ter se encantado com algumas lutadoras também". E sorria quando contava isso.
Um dos combatentes da TV, o que estava de azul, aplicou um Ippon e venceu a luta. E eu fiquei desnorteado com a simpática senhora que fez uma rápida análise do golpe certeiro e perfeito. Acho que tomei um Ippon também.
Os filhos moravam no exterior, queriam levá-la, mas ela preferia ficar naquela casa de idosos, onde tinha companhia e estava no seu país.
Não se sentia triste algumas vezes?  Claro que não. Estava em um momento de calma, depois de tanto trabalho, realizações e aventuras. Apenas isso.
Se não tivesse sido tão intensa e aproveitado os seus momentos, talvez hoje estivesse deprimida. "Eu lia Clarice Lispector", me contou baixinho, como se fosse um segredo maior do que havia me contado à pouco.
"E eu escrevia poesias e desenhava para os meus amores", enquanto cuidava dos filhos. Não ficou claro se a referência era em relação exclusivamente aos filhos. Preferi não arriscar a pergunta.
Percebia-se que todos ali gostavam dela, do seu sorriso e comentários marotos. Era feliz consigo mesma. Apenas isso. Uma lição para 'um jovem' 20 anos mais moço.
A TV mostrava agora a bela arquitetura da Cidade Olímpica, em uma tomada aérea da Barra da Tijuca. Atletas caminhavam pela vila colorida e um publico de ampla faixa etária se encaminhava para os estádios.
A senhora já não prestava mais atenção na TV. Olhava para o seu lado esquerdo, em direção à porta, como que se procurando algo.
Posso ajudá-la?
Pode sim.
Como?
Procure saber sobre um senhor que chegou sozinho ontem. Ele usa anéis e pulseiras, igual a você. Desconfio que gosta de Judô também. Quem sabe até da Clarice! Queria muito conhecê-lo, ver o resto das olimpíadas e passear no jardim com ele...

Comentários

  1. Boa tarde Marcos.
    Leio todos os seus textos e notei diferença neste. São suas impressões claramente, mas acho que aqui se utilizou da forma indireta de ficção, estou certa? Ou esta senhora existe mesmo e isso aconteceu de verdade. Mas a sua leveza e seu estilo estão cada vez melhores. Já pensou em publicar um livro de crônicas? Eu gostaria muito de ler. Um beijo.

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