Distopia (Série Minicontos Modernos)

A nova escola quântica ficou pronta. 15 alunos com 5 anos já haviam sido matriculados. Um número altíssimo considerando a taxa de natalidade de 0,5 filhos por polisal (aglomeração romântica composta por no máximo 10 pessoas de todos os sexos), mesmo com a facilidade da clonagem rápida. Por isso mesmo a Autoridade Superior (AS) já estava promovendo mudanças na regulamentação em vigor, no sentido de pegar para si a reprodução e educação de novos seres humanos. Críticos secretos apelidaram essa nova lei de "Chocadeira Eletrônica" e estudavam meios de sabotar as diversas granjas "Nenéns Alcalinos" que estavam em construção. Caso não conseguissem, o plano b era utilizar um simpatizante da causa que trabalhava na Indústria Central de Suplementos Alimentares. A ideia era inserir secretamente o tetrahidrocanabidiol na nutrição dos recém chocados, desta forma reconfigurando as sinapses cerebrais, desenvolvendo assim pessoas mais afáveis, numa boa. Ao som de eletroreggae.

A reunião dos Preladus Maximus para escolher o nome da escola estava marcada para o Sábado Santo, data em que se comemorava a unificação de todas as religiões. Também neste caso os detratores permaneciam indignados, mesmo tendo passado tantas décadas depois do fim da Sétima Guerra Mundial, causada exatamente pela disputa de quem tinha razão acerca do mundo espiritual. Milhões pereceram. Comemorar o que? Além do que a religião unificada permanecia confusa para a maioria, com suas celebrações mensais apelidadas de "Barafunda Divina", sempre comandadas por um dos Prelados. Ao fim e ao cabo ficava claro que, acima de Deus, só o nome máximo da Autoridade Superior (AS) Mundial. O sujeito que estava no topo da cadeia alimentar. Uma espécie de Sumo Pontífice Imperador Totalitário. Difícil era rezar para alguém que tinha constantemente desarranjos intestinais provocados pela Síndrome do Intestino Irritável, como era do conhecimento de todos. Neste caso nem o alto desenvolvimento da medicina conseguia dar jeito. Corria-se o boato que, dentro da Igreja Unificada, existia uma oração secreta direcionada para provocar caganeira no AS. Rezada com fervor milhares de vezes sempre conseguia seu intento, comprovando a força da espiritualidade quântica. "Prece Para Uma Privada Cheia" chamava-se a súplica. Era de conhecimento pleno que em cada cômodo do Palácio Imperial existia um vaso sanitário, incluindo cozinha e cama. Neste caso era um vaso embutido de alta tecnologia, um buraco que se abria automaticamente por um sensor que ficava nas cobertas denominado "flatulences françaises", homenagem à indústria francesa de perfumes que desenvolveu o dispositivo. Privada Sagrada era o nome deste vaso uma vez que não ficava bem um AS dormir de fraldas quânticas. 

A escolha de nome de escola era um evento de relevância mundial. Restaram poucas regiões habitáveis depois das últimas guerras e o número de crianças havia decaído ainda mais do que de adultos. É importante lembrar que foram as armas de desintegração quânticas que mais eliminaram pessoas, muito mais que explosões atômicas. A vantagem delas é que não destruíam edificações, não provocavam radiação e nem deixavam rastros de corpos carbonizados. Elas foram desenvolvidas antes da guerras nucleares. Por isso mesmo quando essas ocorreram foram restritas a determinadas regiões. 

Merece um capítulo a parte o evento do desenvolvimento das citadas armas. Foram décadas de pesquisas da indústria bélica para chegar ao "State of the Art". De portabilidade individual, carregada por dispositivo USB ou indução, bastava um disparo para o inimigo desintegrar, literalmente. Como era de efeito orgânico, o sujeito virava fumaça e ficavam apenas as roupas estendidas no chão. Inclusive cuecas. Partidário do armamento da população, o AS lançou o programa "Minha Pistola, Minha Vida", com altos subsídios, o que a tornava acessível para todos. Foi considerada um grande passo evolutivo da humanidade. Mas fica o necessário registro que alguns problemas foram surgindo com o passar do tempo. Primeiro foi a quebradeira dos proprietários de cemitérios particulares, crematórios e funerárias. Verdade que os brechós vicejaram devido à catança das roupas dos desintegrados. Também as construtoras começaram a reclamar pois as guerras não destruíam pontes, edifícios e estradas, por conta dos mísseis quânticos de extermínio em massa sem nenhuma explosão. E as religiões questionaram se a desintegração corporal afetava também o espírito, impedindo assim qualquer existência pós morte. Aliás essa foi a semente da criação da Igreja Unificada. O problema tornou-se mais sério quando a população começou a diminuir sensivelmente, independente das guerras. É que qualquer desavença terminava em desintegração. Fechada no trânsito, fura fila no supermercado, desconfiança de infidelidade conjugal... tudo era motivo para o uso indiscriminado das pistolas quânticas. Há relato de um estádio de futebol lotado que ficou repentinamente vazio depois de uma desintegração entre torcidas. Responsabilização criminal era difícil porque na maioria das vezes não sobrava ninguém pra contar a história e não havia corpos para realizar autópsia. Assim veio a acontecer o recolhimento compulsório de todas as armas. Não por opção do AS mas por pressão da indústria e do comércio, cientes de que estava em curso a possibilidade da extinção da raça humana, o que acabaria por afetar seus lucros. Como eram chipadas, não foi difícil encontrar as milhões de pistolas. Apenas duas não foram achadas. Desconfiava-se que estavam em pose do AS ou de um de seus Prelados.

Na reunião Prelar oficial definidora dos nomes das escolas havia umas 50 pessoas da alta hierarquia. Surpreendentemente quem apareceu sem avisar foi Sua Eminência, Autoridade Superior (AS). Iria ser só um observador das discussões. No entanto começou a opinar de uma forma que deixou os demais irritados, embora procurassem não demonstrar. Mas a coisa adquiriu outros contornos quando decretou que o nome deveria ser "Escola Quântica Primária 4 de Julho". Era a data do fechamento do último sindicato trabalhista remanescente da Grande Revolução Empresarial, quando milhares de trabalhadores sindicalistas e sindicalizados foram desintegrados. O tempo fechou porque, mesmo entre muitos dos altos Prelados, havia um sentimento de indignação com relação a este evento. Começou uma discussão acalorada e o AS inconformado com o que ele achava ser um princípio revolucionário, sacou de duas pistolas quânticas. Horrorizados todos descobriram naquele momento com quem estava as armas desaparecidas. Não tiveram tempo de gritar. Partiram deste mundo para o nada em 0,4 segundos. 

O acontecimento da Escola 4 de Julho marcaram uma virada no panorama político. Isso porque duas semanas depois o AS veio a falecer. Os motivos de sua morte nunca ficaram muito bem esclarecidos. O que mais se comenta é que seus médicos particulares o convenceram a mudar a dieta e os remédios. Segundo eles, pesquisaram frutas antigas, quase extintas mas que conseguiram achar em lugares escondidos nos trópicos e em algumas áreas mais frias. Assim o AS ficou se alimentando exclusivamente de uma fruta de cor forte chamada mamão junto com outra denominada pelos antigos de ameixa. Para completar deveria tomar uma porção à base de um componente esquecido chamado Lacto-Purga e beber pouca água. Tal tratamento finalmente evitaria as diarreias diárias. Ao que parece o efeito foi contrário e devastador. O AS teria se esvaído em merda, sob o olhar cúmplice e tranquilo de seus cuidadores.

A herdeira natural do comando seria sua filha única, odiada por ele por ser militante da causa clandestina ABCDEF...Z+. Ela comemorou a morte do pai com Prosecco e renunciou ao posto. O momento que a sociedade atravessa agora é de renovação. A tendência majoritária é que as diversas correntes se organizem em pequenas comunidades independentes, sob comando de sindicatos eleitos democraticamente. Muitos dos avanços tecnológicos vão ser incinerados e quem defender o retorno de um comando central será acusado, julgado e provavelmente condenado a consumir exclusivamente mamão, ameixa seca e Lacto-Purga pelo resto da vida. A conferir.

Postado por Marcos Oliveira 

Comentários

  1. Este conto daria uma boa série da Netflix. Vc poderia também fazer roteiros para esses humoristas de stand-up. Misturar ficção futurista distópica com humor foi sacada genial. kkk

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    1. Olá Amazzony! Acho uma ideia uma série nessa vibe. Até agora não vi nada parecido. Sobre os humoristas, tem muita gente ótima, mas tem muitos que estão precisando mesmo de roteirista. Abraço!

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  2. Tô achando que essa otaridade máxima é de extrema direita

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