O Ataque dos Pássaros
Esse incidente é recente, mas preciso retornar umas décadas para contextualizar. Início dos anos 80 do século passado. Estava em um dos meus primeiros embarques em plataforma de petróleo na Bacia de Campos. A plataforma chamava-se MPG, Módulo Provisório de Garoupa. Essa palavra - provisório - já explica que a mesma não estava concluída. Por exemplo, as acomodações eram containers adaptados. Inclusive onde dormíamos. E tinha goteiras em cima dos beliches. As "aventuras" vividas naquela época dariam um livro com histórias cômicas e outras trágicas. Muitas quase inacreditáveis. Vividas pelos pioneiros do petróleo em alto mar, dos quais me orgulho de ter feito parte, como empregado da maior empresa já criada neste país, a Petrobras.
O embarque seguinte foi melhor. É que, devido ao volume de obras e de trabalhadores, foi necessário encostar ao lado da plataforma uma espécie de hotel flutuante, chamado exatamente de "flotel", para receber o pessoal no fim do turno. Conectava-se à plataforma através de uma ponte, chamada gangway. Acho que o nome do flotel era Songstar, talvez de origem norueguesa, não lembro. Tinha a infraestrutura de um hotel 4 estrelas, tudo muito confortável, incluindo um cinema.
Este cinema, além dos filmes exibidos em determinados horários, ficava conectado na Globo o tempo todo. Ou seja, era também sala de TV. A programação era projetada no telão. Uma noite em que estava sem sono resolvi ir até lá. Cheguei por volta das 23 horas, exatamente quando ia começar a Sessão de Gala, quem tem mais de 50 deve lembrar. "Os Pássaros" (1963) de Hitchcock era o cartaz da noite. Embora não costume ser apontado como estando entre os cinco melhores filmes deste gênio, trata-se sem dúvida de um clássico atemporal. Os mais citados na longa lista deste cineasta normalmente são "Psicose", "Janela Indiscreta", "Um Corpo que Cai", "Disque M Para Matar" e "Festim Diabólico". Pontos de vista de cinéfilos. Recomendo todos para quem não viu ainda.
Eu já tinha assistido mas sempre vale a pena ver de novo. Me sentei na última fileira. A sala escura estava vazia, à exceção de um peão (assim que nos referíamos a nós mesmos, carinhosamente) sentado lá na primeira fila. O filme é provavelmente o primeiro a explorar o tema de "terror animal", seguido muitos anos depois por "Tubarão" do Spielberg. Só que aqui o mais inusitado é que a trama é em torno de (não tão) inocentes pássaros que promovem uma verdadeira catástrofe em uma pacata cidade da Califórnia. As cenas finais são inacreditáveis para um filme realizado em 1963. Daí a genialidade de Hitchcock. Ocorre que ele não busca dar explicações sobre tal fato - dizem que foi baseado em uma história real. Apenas conduz a história e dá pistas. Desta forma o filme termina meio que abruptamente. Naquela época a programação das TVs não era 24 horas no ar. Depois do filme da noite os transmissores eram desligados retornando no dia seguinte.
Como já era 1 da manhã, a Globo nem esperou passar os letreiros. Assim que termina a cena final a emissora sai do ar. Tal fato provocou uma crise de revolta no peão que estava lá na frente. Ele se volta para mim e grita: "Viu só o que esta m* de Globo faz? Nós estamos até agora acordados para ver o final do filme e eles cortam porque está na hora de sair do ar! PQP! Agora nem vamos saber o que aconteceu. Isso é uma vergonha!". Fiquei quieto. Achei que não deveria falar pra ele que o filme tinha terminado ali mesmo. A Globo só havia cortado os letreiros. Na verdade ele nem deu tempo. Saiu xingando a emissora e chutando a porta. Dei boas risadas do fato inusitado.
Por algum motivo há algumas semanas me lembrei dessa história e resolvi rever o filme tantos anos depois. Está disponível no Telecine e acho que também no Amazon Prime (mas neste caso para alugar). E é aí, a partir disso, que se desenrolam os acontecimentos que passo a narrar, com o meu juramento de que é tudo verdade.
Provavelmente já se depararam - nesta época de Internet, Redes Sociais e Smartphones - com uma situação que hoje é corriqueira: você pesquisa algo no seu Notebook ou celular e de repente começam a surgir anúncios de produtos e temas similares. O problema é que isso já extrapolou a lógica. Por exemplo, comente sobre um passeio com alguém, a seguir abra suas redes sociais. Provavelmente aparecerão anúncios de agências de viagem! O telefone está com escuta de Inteligência Artificial ativada 24 horas, mesmo quando desligado? Esses dias quase surtei. Tenho um perfume há muitos anos que está mais ou menos com 1/3 de seu volume. Normalmente depois de um ano, se não utilizado totalmente o frasco, os perfumes costumam mudar suas características e acabam destinados ao lixo. Não foi o caso deste, que permanece com o fragrância original desde sempre. Já se foi na memória a época que o comprei. Chama-se Paco Rabanne Pour Homme, um vidro verde oliva. A noite fria comportava colocar uma leve borrifada, antes da saída. Fiz isso no banheiro. O celular estava na sala. Não comentei com minha esposa sobre o perfume. Aí, antes de sairmos, dou uma olhada no Instagram. Pasmem. Lá estava o anúncio do mesmo perfume. Nunca havia aparecido pra mim. Inclusive eu achava que nem era mais fabricado! Mas lá estava ele no anúncio patrocinado. Será que o celular sentiu o cheiro do perfume e me direcionou a propaganda? E se o perfume realmente não existir mais e foi um anúncio do além? Isso daria uma trama de suspense psicológico sobrenatural. Bem Hitchcock.
Mas a coisa iria piorar. Pouco tempo depois de rever "Os Pássaros" precisei ir a um shopping da cidade para comprar uma sandália (ou chinelo, se preferirem). Como era dia útil, parte da manhã, o estacionamento estava praticamente vazio. Procurei um lugar que tivesse sombra. Mas a amplidão aberta do lugar também era um deserto de verde e sombra. Achei apenas uma pequena árvore (podada) e parei ao lado. Fui na loja Havaianas e comprei um chinelo azul número 39. Aliás, como encareceu nas últimas décadas esse peça que era um calçado básico do proletariado. O mesmo pedaço de borracha se gourmetizou e agora tem modelos que custam mais de 60 pratas! Vejam o que diz a Wikipedia: "O grande público das Havaianas foi, durante trinta anos, uma classe financeiramente desfavorecida que a comprava em mercados de bairro. Assim, as Havaianas ficaram conhecidas como "chinelo de pobre". Tentando mudar esta ideia, a companhia lança em 1991 o modelo Havaianas Sky, com cores fortes e calcanhar mais alto, dando a ideia de que pertencia a um público de classe mais alta. Seu preço também é mais elevado que o das tradicionais". Não falei? Mas estou divagando. Voltemos.
Retornando, já perto do carro e segurando a sacola com o chinelo (de R$ 58,90!), senti algo estranho bem acima da minha cabeça, como um toque. Olhei, não vi nada. Seriam espíritos? Há décadas não frequento escola espírita mas lembro bem de algumas palestras e livros. Fiquei atento mas tranquilo. A medida que me aproximava do veículo essa sensação se repetia, agora com um barulho. Resolvi parar e observar. Aí descobri o que estava ocorrendo. Dois pássaros estavam fazendo voos rasantes sobre mim. Literalmente me atacando. Eram do tamanho de Bem-Te-Vis, mas não tenho certeza. Me lembrei de duas coisas: do acontecimento envolvendo o perfume e de que havia visto, há pouco, o filme do Hitchcock. Entrei em pânico. Será que o mundo natural, real, estava agindo da mesma forma? Os pássaros sabiam que eu tinha visto o filme e estavam reproduzindo o enredo? Me abaixei e fiquei nessa sensação de surto eminente enquanto tentava concatenar as ideias naquele estacionamento vazio.
Demorou um pouco mas eu consegui decifrar o enigma antes que enlouquecesse de vez. Na pequena árvore havia um ninho. E o filhote estava no chão, caminhando e tentando dar o seu primeiro voo. Os pais estavam atentos e minha aproximação fez com buscassem defende-lo. Respirei aliviado, ciente que as coisas estavam em seu devido lugar, incluindo minha mente. O pequeno pássaro havia entrado exatamente embaixo do meu carro. Caminhei meio que ajoelhado e me abaixei mais tentando retirar o mesmo dali. Não devia ter feito isso. O pai e a mãe desta vez vieram pesado pra cima, me atacando com as garras e os bicos. Me senti como as vítimas do filme. Me levantei de um salto, abri a porta do carro, pulei pra dentro, respirando aliviado. Os ataques continuaram mas os vidros fechados impediram que eu fosse trucidado. Respirei fundo e aguardei pacientemente até ter a certeza que o filhote estava seguro para poder sair com o carro. Ainda dei uma última olhada. Finalmente havia conseguido alçar voo mas os pais nem olhavam para ele. Me fitavam com frieza, querendo ter a certeza que eu estava indo embora mesmo.
Me lembrei daquele peão no cinema da plataforma de tantos anos atrás. Teria ele conseguido rever o filme e concluído que o final era aquele mesmo? Será que ele também chegou a ser atacado por "indefesos" pássaros? Por via das dúvidas, cuidado com Hitchcock. E com perfumes.
Postado por Marcos Oliveira em 14/11/2024
Olá Marcos! Acompanho suas crônicas. Também escrevo. O que acho mais incrível em seus escritos é que consegue misturar temas diferentes que aparentemente não tem nada a ver uma coisa com outra mas que vc vai amarrando, criando uma leitura incrível. Isso é mais comum em romances, mas em crônicas de fatos reais, texto curto, é muito difícil e vc faz de forma incrível. Nesta você reunião vida na plataforma, filme, perfume, havaianas, etc. Cada caso desse daria uma crônica diferente mas vc juntou tudo em uma só e ficou ótimo! Seria justo reunir essas crônicas em um livro mas eu sei como isso é difícil. As editoras só se interessam por esses romances de adolescentes, assim mesmo de autores do exterior. Brasileiros só aqueles já consagrados que são poucos. Um autor estreante tem de pagar do próprio bolso e depois não consegue distribuir. Mesmo assim torço para que consiga pois seus textos são melhores do que muitos nomes famosos. A história dos pássaros no shopping é verdade mesmo?
ResponderExcluirOi Alice. Obrigado por ter comentado. Me manda seus textos. Sobre o livro, vc falou a pura verdade. E eu não tenho dinheiro para bancar nem um frasco novo do perfume que dirá o livro. A saída seria utilizar algum patrocínio de incentivo à cultura como a Lei Paulo Gustavo. Mas trata-se de um dinheiro repassado pelo Governo Federal para os municípios. Aí já sabe né, só quem tem “QI” é que consegue. Sobre o ataque dos pássaros, aconteceu como eu contei. E tem mais, eu filmei de dentro do carro o momento em que um deles me ataca e bate no vidro. Parecia cena do filme. Acontece que eu apaguei acidentalmente ao fazer uma limpeza no celular que estava com 256 gb utilizados. Quase quebrei o celular por causa disso! Abraço!
ExcluirKkkkkkk Essa do perfume é demais. Sou mulher e só uso perfume masculino. Esse Paco Rabanne eu não conhecia e pesquisei. Existe ainda sim. Fui no site da Rabanne verificar. Ele foi lançado em 1973. Recomendo outro que o perfume se mantem mesmo depois de anos é o Issey Miyake L'eau D'issey mas estão muito caros.
ResponderExcluirEu conheço o L’eau D’issey. Realmente tem essa mesma característica rara nos perfumes. E estão caros mesmo. Ou não estão, nós é que estamos sem dinheiro. Ah! Embora seja antigo comigo eu não comprei ele na data do lançamento não... Rsrsr... Abraço!
Excluir