A Senhora do Rio Grande

A residência lembrava uma antiga canção. Ter uma casinha branca com varanda, um quintal e uma janela para ver o sol nascer. A única moradora era uma senhora de 82 anos. Não solitária, tinha uma cachorra e um gato. Os cabelos curtos e brancos bem lisos eram moldura de um rosto de pele alva, sem rugas. Os olhos azuis se destacavam. Uma figura meio que celestial. O que a trazia visualmente para o mundo real eram os óculos de aros negros.

A casa simples tinha uma cerca viva, com plantas em vasos ao longo de todo o perímetro. Tudo bem cuidado. Ela deu uma olhada geral, antes de passar a corrente e trancar o cadeado do portão baixo. Com um grande guarda-chuvas listrado atravessou a rua vagarosamente, tentando desviar da água que aos poucos ia tomando toda aquela região antes sempre tranquila, sem grandes acontecimentos. Na mão direita uma caixa azul de transporte de animais. Dentro, seus queridos bichinhos.

O filho lhe telefonara aflito dizendo que, desta vez, ela tinha de sair imediatamente. Ela titubeou. Das outras vezes negara deixar seu lar e ponto final. No entanto acompanhava pela TV o que estava acontecendo. A chuva havia sido intensa ao longo dos últimos quatro dias. O grande rio que passava no pequeno distrito e que ficava a uns 300 metros não parava de subir.

Viu muitas matérias falando sobre um tal de aquecimento global. Nunca ligou para isso desde que aquele conhecido deputado com sobrenome de pronúncia difícil igual ao dela, disse que era tudo mentira. Lembrou que era o mesmo que havia recomendado não tomar a vacina contra Covid. Seu filho a havia praticamente obrigado a tomar mas não conseguiu convencer o pai. Logo depois ambos tiveram de ser internados. Ela saiu uma semana depois. Ele, nunca mais. Desde então já havia decidido não mais votar naquele representante que antes ela admirava tanto.

Em suas observações já havia concluído que havia algo de muito errado com o clima. Chuva assim e nesta época do ano nunca vira ao longo de décadas ali. Lembrou que sua mãe lhe contava de uma grande enchente que havia ocorrido um ano antes dela nascer. Mesmo assim as águas nunca haviam chegado tão perto.

A repórter, que estava ao vivo, esperou ela terminar o seu trajeto. A senhora está deixando o lugar? A fala mansa mas firme, o agradável sotaque e aquele rosto afável deixavam o espectador meio que hipnotizado. Sim, meu filho está vindo me buscar. Ela concordou em ir para a casa dele em uma cidade próxima, lugar mais elevado não tão afetado. Mas só iria se pudesse levar seus bichos. Os patos também? Combinaram que ela iria levar apenas Amora (a cachorra) e Cajú (o gato). As três patas e o pato ela iria deixar soltos. Eles saberiam se virar quando as águas aumentassem.

A senhora está triste em deixar o lugar? Claro, ela responde. Mas tinha esperança que iria voltar. Não queria ficar morando com a família do filho. Sua vida era sua casinha, suas plantas e seus bichinhos, além de uns poucos vizinhos amigos. Seu sofrimento maior era com o que assistia na TV. Tantas perdas, muito dor. Será que o próprio homem está provocando essa revolta da natureza? Não estava assustada. Não tinha medo de morrer. Minha filha, com essa idade vi muitas coisas, chorei muito, já perdi todos os meus medos. Seguiria aceitando as coisas de acordo com a vontade de Deus.

O filho chegou com seu Fiat Uno branco antigo mas bem conservado. Com cuidado colocam a caixa com os animais no banco de trás. Antes de entrar no carro ela se despede e dá uma última olhada para a casa. A repórter fica observando sem falar nada, parecia que se esquecera que estava ao vivo. Ficou observando o carro se afastar. O cinegrafista acompanhando. A transmissão corta então para o apresentador do telejornal que permanece por alguns segundos em silencio antes de chamar os comerciais. 

Comentários

  1. Olá! Acho que vi essa reportagem. Mas foram só uns 30 segundos dessa senhora falando do filho e dos bichos. Vc transformou em uma excelente crônica, criando toda uma história sobre ela. Parabéns!

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    1. A senhorinha muito simpática contando que só iria pra casa do filho se pudesse levar os bichos caso contrário ficaria, foi realmente a inspiração.

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  2. Também vi. A situação no Rio Grande do Sul está muito difícil. Texto emotivo e oportuno.

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    1. Realmente em alguns locais a situação está desesperadora. Vamos rezar para que essas águas de maio se acalmem.

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  3. Boa noite Marcos. Situação muito triste. Valeu a crônica. Grande abraço

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  4. Nobre amigo, em poucas linhas de texto, mas que consegue expressar a nossa realidade , nesse momento de tantas perdas,
    Suas palavras trazem um forte clamor emotivo .

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