Samba, Rock & Livros

No sábado passado fomos, eu e esposa, a uma roda de samba, na quadra de um tradicional bloco da cidade que, aliás, fica tão perto de casa que dá pra ir a pé.
No caminho e lá no local, percebi algo que me acompanha desde sempre: um estranhamento de conhecidos que não me inserem em tal contexto. Explico: sempre fui - e todos sabem - mais ligado ao rock. Mas o fato é que apenas minha face mais explícita é que é da guitarra. A bem da verdade sempre gostei também de samba, mpb, jazz, blues, etc.

É fato que - parafraseando o Erasmo Carlos - tenho que manter a minha fama de rocker, talvez para dar uma de Mick Jagger que mantém a estrutura aos 79 anos, 15 anos mais velho que eu! Para quem não conhece, lá pelos idos de 1965, Erasmo queria proibir a namorada de sair sozinha: "E digo não, por favor, não insista/Garota ir ao cinema é uma coisa normal/Mas é que eu tenho que manter a minha fama de mau". Voltando ao cantor dos Rolling Stones, pelo que sei ele largou as drogas lá pelos anos 80. Pouco álcool, dieta e atividade física. O miraculosamente ainda vivo Keith Richards, lendário guitarrista da mesma banda e mesma idade, também afirma que deixou de ser louco a tempo de se safar de uma morte prematura lá pelos 27. Isso é o que ele afirma em sua autobigrafia oportunamente intitulada "Vida".

De volta à quadra, desconfio que o pessoal gosta de ver um 'roqueiro' envolvido com o batuque e o bandolim. Um fato que me atrai em uma boa roda de samba raiz é o espaço democrático sem preconceitos raciais e sociais. Neste caso a excelente cantora era loira e os componentes da banda, pretos. Assim era também a plateia que rodeava. Alguns vestiam roupas de grife, muitos outros com zero de preocupação com marcas ou estilo. Para todos vale a música, a alegria, a confraternização, a cerveja e até o vinho. Essa sim é a característica histórica do verdadeiro brasileiro, não a que temos visto nos últimos anos nas redes sociais, de desarmonia e divisão.

Embalado pela batucada, a lembrança de que a África está presente em tudo de bom que a música produziu no chamado novo mundo, seja no Brasil, no Caribe ou nos EUA. E isso não é pouca coisa, considerando os séculos de existência das composições européias e asiáticas. Neste mesmo batuque, pairando no ar sobre os sambistas, Brahmas, Heinekens e falatórios, a mente viaja momentaneamente e me lembro do livro mais recente do baiano Itamar Vieira Junior.

Faço uma conexão de seus romances com aquele evento musical/social/antropológico. "Torto Arado", seu livro de estréia, faturou o prêmio português Leya em 2018, que lhe rendeu cerca de 100 mil Euros e fama internacional, que inclusive vai virar série no streaming. Fantástico ver um negro baiano ganhando tal distinção e contando uma épica história de seu povo, na Chapada Diamantina. Sua nova obra, "Salvar o Fogo", desce geograficamente até o Recôncavo Baiano para contar a sofrida história da família de Luzia, mais uma de suas inesquecíveis personagens. Uma sequencia do tema ligado à violência colonial e aos conflitos no campo de "Torto Arado". Chamas que crepitam o fardo dos despossuídos.

A imensa dívida social que o país tem, sobretudo com os descendentes dos povos escravizados, deve ser sempre relembrada, seja nas histórias comoventes do Itamar, seja em sambas que retratam, revivem ou fazem um aviso, como diz Wilson das Neves: "Melhor é o poder devolver pra esse povo a alegria/Se não todo mundo vai sambar no dia/Que o morro descer e não for carnaval". 

Retorno de minha viagem momentanea à Bahia e aos morros do Rio, olho à minha volta. Todos cantando. Nas mesas, pequenos baldes com gelo cheio de latas coloridas. Todas as cores que vejo naquelas pessoas felizes, pelo menos naqueles instantes, que é o que conta. Tento dar uns passos desengonçados mas nesse quesito percebo que, como sambista, sou um excelente 'roqueiro'. E sigo um estranho no ninho por parte de alguns olhares. Só eu sei que aquele também é meu ambiente do coração. Provavelmente por causa da minha origem suburbana, branco de quase nenhuma posse, mas de alegria traduzida em forma de sambas periféricos dos negros, meus queridos vizinhos e amigos de infância.

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