A Fábrica Bangu e a New France

Fabrica de Tecidos Bangu

Há 55 anos, mais ou menos...
"Na minha infância, agora tão distante" ("Traumas", Roberto Carlos, 1971), minha mãe e as vizinhas iam mensalmente na fábrica de tecidos Bangu, no bairro de mesmo nome no Rio. Uma vez por mês eles vendiam os recortes que sobravam, a preços módicos, para os suburbanos circunvizinhos.
Com esses panos é que eram costuradas as nossas roupas em uma máquina Singer - onde eu brincava de motorista de ônibus.
As roupas duravam muito - sobretudo os shorts tão castigados pelas peladas no campo de várzea - porque eram constantemente remendados. Hoje na antiga fábrica funciona o Shopping Bangu.
Nunca senti falta de roupas de melhor qualidade estética e fabril porque aquela era minha realidade e de meus amiguinhos desde sempre. Até que...

Pula 10 anos...
Quando no primeiro ano da Escola Técnica, fui a uma viagem (minha primeira) de encontro de corais. Foi lá em João Pessoa, Paraíba, 1975. Longe. Duas semanas. Na minha tradição de poucas roupas de baixa qualidade, aconteceu da primeira vez conviver com adolescentes que levaram malas e malas de vestes para frio, calor, banho de mar e piscina, passeios noturnos, compromissos diurnos, cerimônias, etc etc. Eu tive de pedir emprestado alguma coisa a uns amigos. Um deles me cedeu uma t-shirt marrom com listras bege nos ombros. Nunca tinha experimentado um tecido como aquele, parecia ser um algodão nobre. Não tirei mais e, na hora de devolver, o colega vendo minha paixão pela camisa e percebendo que eu não tinha muitas outras coisas como opção, não pegou de volta. Não lembro o nome dele, mas sou grato até hoje pela camiseta que me acompanhou por muito tempo.

Hoje
Precisei ir a uma agencia bancária de nome Bradesco. É que estava com um documento chamado DARJ para pagar e esse tipo de arrecadação estadual só pode ser recolhido pessoalmente, nada online. Não sei porque, mistérios do mundo. E só podia ser nesta não muito bem afamada instituição. Optei por uma filial mais perto de casa. Lá chegando fui informado que somente a agência central estava recebendo pagamentos. Entendi, mais uma vez, a má fama. Como estou 'desmotorizado' resolvi não pegar o celular para apertar o botãozinho mágico onde está escrito "Uber" e fui fazer uma leve caminhada de uns 15 minutos. Sábia decisão. Fato raro na biografia deste que vos fala. Me refiro ao termo que vem de "sábio". É que faz algum tempo que não me dedico a fazer uma boa atividade física,  não que esta caminhada iria resolver o problema. Além disso aproveitei que este atípico novembro tem tido umas temperaturas amenas, embora estivesse com jeito de cair uma chuvarada. Que aliás não seria surpresa: no domingo de manhã peguei uma enxurrada munido apenas de uma guarda-chuva feito no noroeste da China onde provavelmente nunca chove nem venta, pois fizeram um equipamento bio-degradável ao menor sinal de umidade.
Há muito tempo não andava por ali. E foi nessa redescoberta que passei em frente a um local onde funcionava uma loja de roupas masculinas. "Parei, olhei" (Roberto Carlos, 1965).

Retorna 40 anos
Depois daquele sufoco lá em João Pessoa fiquei um tanto quanto obcecado por ter roupas suficientes para me apresentar bem. Claro que tem a ver com autoestima de um rapaz novo, encantado: "Calça nova de riscado / Paletó de linho branco / Que até o mês passado / Lá no campo 'inda era flor / Sob o meu chapéu quebrado / Um sorriso ingênuo e franco / De um rapaz novo, encantado / Com 20 anos de amor" ("Mucuripe", Belchior e Fagner, 1973). Faltava, como sempre, dinheiro para tal. Assim, logo que comecei a trabalhar, não almejava carro, moto, viagens ou casa, mas poder entrar naquela loja de roupas masculinas caras da Rua 13 de Maio (nome que traz reflexões) chamada New France. Assim foi feito. Me tornei cliente assíduo, daqueles conhecidos e amigo dos vendedores e suas comissões. Digamos que foi uma espécie de realização pessoal. Da mesma forma que poder pagar um táxi pela primeira vez, ou tomar banho usando sabonete Senador (o original, cor de abóbora), substituindo os onipresentes Palmolive e Lux, que ainda existem, diga-se de passagem.
A New France foi fechada lá pelo início dos anos 90, se não me falha a memória. Não sei por qual motivo. Alguns me disseram que foi falecimento do proprietário. Havia também rumores de que a onda das lojas que vendiam roupas em 12 vezes sem juros, pagos no carnê (assinávamos uma nota promissória) havia abalado o comércio chique. Duvido disso. Tanto que logo a seguir um empresário abriu uma loja com o mesmo padrão no térreo de um novo edifício que havia sido inaugurado ao lado na época, exatamente para herdar os órfãos da New France. Foi o primeiro prédio com elevador panorâmico da cidade. A loja chamava-se Ponthion e existe até hoje, mas em outo local. Em tempo: resolvo pesquisar no Google e só agora descobri que Ponthion é uma região do interior da França. Como vêem, a França sempre foi sinônimo de roupas elegantes, além de perfumes e muitas guloseimas. E hoje está em alta na Copa com o grande Mbappé.

Hoje
Já no banco. Aguardando atendimento. O salão é imenso, vivia cheio há décadas. Com os Apps, cada vez um número menor de pessoas precisa frequentar assiduamente as agências. Que bom. Ainda mais que a onda de Covid está retornando. Por via das dúvidas, coloquei a máscara. E fiquei me questionando sobre o tempo (sempre ele), por causa da New France, vislumbrando o passado mas sobretudo o momento presente. E também por uma crônica de um paulista, Júlio Bernardo, o JB, que recebi ontem. Nela ele fala sobre a partida de tantos bons artistas neste mês. Conta uma coisa que eu não sabia: o grande Peter Frampton está com sério problema de saúde: "Peter Frampton é um grande guitarrista que compõe músicas pop como ninguém e além de tudo canta super bem. No auge de sua carreira foi prejudicado por, veja só que ridículo, ser bonito. Como se não bastasse o tempo foi cruel e hoje ele tá a cara do Paulo Coelho. Como pouca desgraça não é suficiente nos últimos anos foi abatido por uma doença degenerativa que atinge pernas, braços e mãos. Um diagnóstico no momento certo permitiu uma tour em forma de despedida."
JB, ao final da crônica, me alerta: "fato é que minha geração fez pouca coisa relevante e ficaremos conhecidos como aqueles que sobreviveram a peste do século. Milhões de vidas perdidas começam a pesar um bocado na consciência coletiva e nos deve levar a pensar de que maneira podemos fazer valer a pena os minutos que nos sobraram. Muita gente se foi e agora é ladeira abaixo. Mas você ainda está aqui, Marcos. Faça valer."

De volta aos anos 80 (e a 2022, parecendo "De Volta Para o Futuro")
Já com um emprego garantido, restava frequentar a loja citada e o problema maior era escolher a roupa adequada. Parece piada hoje em dia, não é mesmo?  Com tantas demandas a nos deixar em estágio de alerta, das preocupações com nossos queridos, com as finanças, com a saúde, com o país... não seria nada mal fazer uma viagem no tempo apenas para ver a New France, conversar com os vendedores e comprar algo, nem que seja um simples par de meias coloridas (moda que voltou recentemente). 
Retornando do banco, parei outra vez no antigo local onde funcionava. Não está abandonado. Pelo contrário. Exatamente no mesmo lugar funciona uma boutique de venda de vestidos chiques para festas. Deu vontade de entrar no espaço, mas as lojistas poderiam me confundir com um "varão" de preferencias não ortodoxas. Nada contra mas fiquei mesmo com as recordações - que sempre farão parte de nossa vida - e segui em frente.
Nesta ladeira, é preciso fazer valer a pena os momentos que temos. Mas também com as boas lembranças. Mesmo as que não chegamos a ver: imagino minha mãe, na fila da Fábrica Bangu, comprando tecidos baratos para fazer minhas roupas e as dos meus irmãos.

Post Scriptum
Fazia tempo que não escrevia algo. E essa pseudo crônica, vi agora, saiu parecendo uma daquelas séries estranhas, tipo a alemã "Dark", cheias de flashbacks e difíceis de entender. Acho que reflete o momento um tanto quanto bizarro que vivemos. Como uma Copa do Mundo em um país intolerante e por isso mesmo, intolerável. Resta-nos a esperança que começa em 1 de janeiro de 2023. E não me refiro, obviamente, a uma improvável reabertura da New France na Rua 13 de Maio, muito menos à reinauguração da Fábrica Bangu.

Comentários

  1. Bom te ver de volta amigo. E em grande forma, como sempre. Cadê o livro? Grande abraço!

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  2. Como sempre, muito bom.

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  3. Show Marcos! Realmente na época de adolescência pensava muito em usar roupas da moda e tênis! Me lembro bem das Lojas Impecável onde compravamos roupas e calçados e parcelavamos a compra através de um carnê! Tempos bons! Grande abraço!

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    1. A Impecável "maré mansa" fez história no Rio. Foi das primeiras a implantar o carnê. Abraço!

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  4. Show Marcos! Fui várias vezes no Shopping Bangu a qual preservou a arquitetura da antiga fábrica têxtil! Realmente a época compravamos roupas e calçados em lojas que parcelavam as compras e emitiam um carnê! Comprava muito nas lojas Impecável! Grande abraço!

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    1. Confesso que ainda não fui ao Shopping Bangu, mas está na minha lista exatamente por essa história.

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  5. Não deixe nunca de escrever! Suas crônicas são maravilhosas.

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  6. Que crônica incrível, pai!!! Você é meu escritor preferido!

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  7. Que delícia esta leitura, Marquinhos.
    Dei boas risadas solitárias, um deleite perceber os detalhes nas entrelinhas do tempo q já se foi e nos engole como num fastfood...grato!

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    1. Que bom que gostou amigo. Orgulho tê-lo como leitor. Grande abraço!

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  8. Que bom que continua publicando suas memórias e com isso se fazendo feliz. Feliz por saber que as pequenas coisas que viveu, até os perrengues, foram importantes para se tornar o homem que é. Parabéns !

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    1. Obrigado! Realmente tem sido bom resgatar algumas histórias enquanto comento as coisas simples do cotidiano .

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  9. Que texto maravilhoso, Marcos! Que bom que você voltou a escrever!

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  10. Estes recortes na linha de tempo enriqueceu a história.Gostei muito.Esta area da cidade de Campos também me trás excelentes recordações.

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    1. Sim. Ali perto, onde hoje é um estacionamento, funcionou em um antigo casarão a Galeria Picasso. Nos anos 70, onde hoje é um posto, tinha um bar famoso, o Taberna 13. Já o Edifício Renato Pontes Barreto tornou-se uma referência na cidade.

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  11. Marcos: adorei ler essa crônica. Um pouco de história mesclado com biografia… fantástica! Adorei!

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