"This Is Us" e o trem para o além

Por muitos motivos o mês de maio é sempre muito interessante. Este ano não foi diferente. No entanto, alguns fatos abalaram essa sensação.

Um conhecido morreu, de infarto do miocárdio, enquanto fazia teste ergométrico. Aliás foi o segundo em menos de um ano. Se tiver algum leitor médico desta tentativa de crônica, dá pra me explicar como isso pode acontecer? O sujeito está todo monitorado, ao lado do cardiologista, aparentemente saudável e, de repente, pluft!

Mas o que mais me abalou foi a partida de um amigo que não via há décadas. Perdi o contato com ele quando adquiriu nova família e mudou de cidade. Através de terceiros soube que teve uma daqueles malfadados "infartos fulminantes" enquanto dormia. Morava na Barra da Tijuca. Tinha 60 anos.

Interessante como pessoas que passam por nossa vida por um período relativamente curto deixam boas marcas indeléveis. Este foi por causa da música. Lá pelos anos 70, quando o conheci, era uma espécie de mensageiro de algo superior: o poder dos sons como um veículo de elevação de nossa existência. Seus olhos brilhavam quando falava de uma banda. Seu discurso musical era incisivo e não tinha como não se influenciar, desde que você tenha nascido com o dom de amar a música. Procedia ele como um agente do despertar para isso.

Naquela época eu, paupérrimo, não tinha toca-discos. Ele possuía um belíssimo 3 em 1 e uma já vasta coleção de LPs de Hard Rock e Rock Progressivo. Ia na casa dele e ficava horas aprendendo e me apaixonando por aqueles sons. Como mentor, tinha a paciência e o prazer de explicar pra mim e para outros amigos o que significava aquilo tudo.

Tanto tempo depois ainda me lembro daquele brilho que a música lhe proporcionava. Quis o destino que partisse no mesmo mês de dois músicos que admirava: o grego Vangelis e o inglês Alan White, baterista do Yes. Gosto de pensar que foi recebido por eles. O que me leva ao tema correlato do título dessas mal traçadas linhas: no mês de maio assisti aos capítulos finais da série "This Is Us". Não gosto de indicar séries a não ser que seja muito solicitado. O que é o contrário da minha postura com relação à música onde sempre "empurrei" para os amigos fitas cassete, CDRs, Pen Drives e, atualmente, Playlists, em uma tentativa de convence-los a gostar daquilo tanto quanto eu. Provavelmente um tipo de missão a que eu inadvertidamente me impus, talvez legado do citado amigo.

"This is Us" é uma série longa. Seis temporadas com 18 capítulos de 50 minutos. Portanto 108 episódios, 5.400 minutos! Trata-se de um drama que revela como os "menores acontecimentos afetam quem nos tornamos, e como as conexões que compartilhamos uns com os outros podem transcender o tempo, a distância e até a morte". 

Os capítulos finais conseguem ser ainda mais emocionantes do que foi toda a épica série familiar. Parece ser a única que vi que tem um (ótimo) propósito, além de apenas trazer momentos de diversão nessa nossa conturbada luta diária.

Em seus momentos derradeiros narra (alerta de spoiler!) a partida da matriarca que sofria de Alzheimer. Para quem já teve casos assim em sua história soa mais familiar ainda. Roteiristas optaram por mostrar essa viagem de ida acontecendo em um trem (ao mesmo tempo em que está na cama desacordada e seus três filhos se despedem dela). Cada vagão é um pedaço de sua história, com as pessoas que passaram por sua vida lhe falando sobre o seu significado em suas existências. Não faltou um vagão bar em que o médico que fez o parto de seus filhos lhe serve um drink pedido por ela: um Vesper, o cocktail do James Bond - mistura de Gin, Vodka e um aperitivo francês chamado Lillet, muito semelhante ao Martini Bianco. Com uma casca de limão siciliano. "A vida é colecionar pequenos momentos" diz o patriarca aos pequenos filhos em um dos flashbacks  finais, tentando desvendar de forma simples o sentido da vida e do que existe para além dela.

Essa é a ligação, talvez óbvia, que fiz ao saber da viagem do amigo - que deixou lembranças, mesmo décadas depois sem contato - com o trem para o além da série.  

No mais, depois das emoções de maio, resta-me marcar neste mês de junho uma revisão com minha cardiologista. Mas não estou animado com a ideia de fazer teste ergométrico. Aquele trem ainda vai ficar me esperando na estação por um bom tempo.

P.S.: no vídeo a seguir Leandro Karnal explica, com propriedade, o sucesso de "This Is Us".

Comentários

  1. Marcos, boa demais sua crônica. A série só está disponível no Star+ ?

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    1. Olá Cláudio. Tem também na Amazon Prime Vídeo, mas por enquanto só as cinco primeiras temporadas. Parece que a Globo comprou os direitos para TV aberta mas não tenho certeza.

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  2. Também perdi muita gente nos últimos tempos.Gostei da conexão que vc fez com essa difícil situação real e a peça de ficção. Vendo o vídeo do Karnal entendi melhor. Obrigada!

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  3. Todo som de vida tem com-passo. Gostei muito da crônica!

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  4. Dacia Marieta Barbosa da Costa Oliveira1 de junho de 2022 às 18:01

    Excelente crônica,depoimento emocionante sobre a partida de pessoas queridas....e que esse " trem" demore bastante na estação terrestre antes de partir... Você ainda tem muito que viver, partilhando seu amor pela música nas suas escritas, que tanto prazer nos dá, quando lemos e relemos. Bjss.

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    1. Obrigado querida! Estamos por aqui compartilhando a existência, até chegar a hora do nosso trem.
      Que Deus acolha o amigo.

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  5. Marcus Vinicius Cardozo de1 de junho de 2022 às 18:15

    Parabéns pela sua crônica, nota-se nela o grande sentimento de perda que vc sentiu, assim como eu senti na passagem do meu amigo/irmão. Tudo aquilo que transmiti de música para ele, foi repassado para vc, o que traz enorme felicidade. Eu brincava muito com ele dizendo que ele só gostava de som de novela mas depois que o fiz conhecer as bandas dos anos 70, ele se encantou e não mais parou. Vai nos fazer falta este camarada mas nosso bom Deus precisou dele lá em cima para mostrar aos de lá uma boa música.

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    1. Obrigado pelas palavras amigo. Quando soube, logo lembrei de você que era a pessoa mais ligada a ele. Não sabia que vc foi o start das bandas pra ele. Faz mais sentido ainda a ligação com o tema da série. Grande abraço!

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  6. Que linda crônica, meu amigo de longa data. Sua narrativa sempre leve e perspicaz das coisas muito nos acolhe nestes tempos de tantas perdas, inomináveis perdas!
    Fique em paz e continue firme na estação, ainda há muito a ser buscado antes da locomotiva!

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    1. Muito obrigado pelas palavras, caro amigo. Vindo de você soam ainda mais importantes. Sigamos em frente, o trem não tem pressa. :)

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  7. Adorei a crônica, me tocou fundo, também lembrei de amigos de jornada que partiram e do quanto essa passagem é breve!
    Um abraço querido amigo!

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    1. Realmente o episódio que faço menção acaba por nos fazer lembrar de todos que passaram por nós e se foram. Breve passagem.

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