A Canção de Amor e o Feminicídio

Leio no jornal... quer dizer, não leio no jornal e sim em um desses sites de notícias, que houve um tiroteio em um bairro periférico. A causa teria sido o fato de garotos de outro bairro terem incursionado em uma festa que não haviam sido convidados. Por sorte, muita sorte, não ocorreram maiores danos à integridade física de ninguém. De fato o motivo por trás tem mais a ver com guerras de grupos rivais por pontos do que simplesmente aparecer em um evento sem convite.

Lá pelos idos da já distante década de 1970 tínhamos um grupinho que, entre outras peripécias, caçava festas regadas a Rum com Coca-Cola (viva Cuba!) para "paquerarmos" as meninas. Devo deixar bem claro para novas gerações que era comum tal hábito. Na época das discotecas caseiras estranhos não eram mal vistos: aumentava o número de adeptos da danceteria que havia sido improvisada com carinho. No fundo o que almejávamos era usufruir o momento das músicas "lentas" para dançar coladinho com as jovens da região. É bem verdade que nem sempre havia uma extrema felicidade por parte do público masculino local. É que aumentava a concorrência. Pelo menos uma vez levamos uma corrida de uns dez, revoltados pelo fato de representarmos uma ameaça às suas pretensões de namoro com as belezuras do bairro.

Para principiantes, deste Ano da Graça de 2022, é interessante frisar que "música lenta", também chamada de baladas (não no sentido atual) eram construções melódicas simples em compasso de tempo lento, ritmo não complexo e repetitivo cujo objetivo era ajudar qualquer um (mesmo os menos capacitados para tal) a dançar de corpo colado com a dama que o atraía no jogo amoroso adolescente.

Em quase sua totalidade as canções eram americanas. Ou pelo menos pensávamos que eram. Derivadas da Soul Music e Rhythm and Blues, a música dos nossos bailinhos eram conhecidas a partir do rádio e dos discos das trilhas sonoras internacionais de novelas, campeões de vendagem. Mas, no meio de toda aquela importação sonora, existiam infiltrados brasileiros. Só descobri isso muitos anos depois.

Hoje é público e notório que grupos como Pholhas e Light Reflections, auto-intitulados como ingleses ou norte-americanos eram na verdade made in Brazil. O mesmo de cantores que fizeram canções de sucesso como Mark Davis (Fábio Júnior), Chrystian (mais tarde na dupla Chrystian & Ralf), Steve MacLean (o produtor Hélio Costa Manso), Dave Maclean (José Carlos Gonzales), Christie Burgh e Tony Stevens (o cantor Jessé), etc. Todos excelentes, muitas vezes melhores que as matrizes. As canções desses astros "estrangeiros" eram na medida certa para temas de novelas e festinhas dos anos 70. Talvez por serem brasileiros sabiam exatamente o que a garotada estava querendo: temas românticos para embalar suaves rodopios na penumbra da pista de dança. Não havia quem resistisse aos apelos hormonais despertados por temas como "Me and You", "She Made Me Cry", "True Love", "Don't Let Me Cry" e muitas outras.

Mas nem tudo são flores, descobriria eu anos depois. Eventualmente poderia ser Coroa de Flores. A verdade é que muitos não dominavam fluentemente o idioma do Tio Sam. Nem nós do lado de cá do toca-discos nem eles, do lado de lá, produzindo as canções. Tal observação me foi despertada por uma entrevista concedida pelo mais famoso, competente e longevo grupo anglo-brasileiro, o Pholhas. No processo de composição, segundo afirmaram, primeiro criavam a música, com sua melodia, andamento, arranjos, etc. Depois, a parte mais complicada para eles, a letra. Ninguém da banda tinha frequentado Yázigi, CCAA ou IBEU. Segundo contaram, alguém possuía um livro que vinha com frases prontas em inglês e sua respectiva tradução. Eles faziam então um garimpo para concatenar frases com algum sentido e a respectiva melodia. Chego agora ao ponto crucial.

Se pesquisarem no Spotify verão que a música mais popular do grupo chama-se "My Mistake" ("Meu Erro"), com mais de 5 milhões de downloads. Não é pra menos pois faz jus à tradição melódica da banda, com uma introdução no órgão Hammond que era sua marca registrada. Quando o DJ a tocava, a movimentação na pista era intensa e as luzes diminuíam ainda mais... Afinal tratava-se de uma das mais lindas canções de amor daquele período juvenil. Pelo menos era o que concluíamos, tomando como base a bela melodia propícia para a dança agarradinha. Só que não era bem disso que tratava a letra.

Depois que ouvi essa entrevista resolvi - por pura curiosidade - voltar a esta antiga canção para desvendar o seu significado romântico. A surpresa é que a narrativa refere-se ao comentário de um sujeito preso por ter cometido um erro: assassinou a esposa! Sério! Cometeu feminicídio - ok, foi crime comum pois na época não havia sido introduzido no Código Penal o art. 121, parágrafo 2º, VI - porque ela havia "saído com o outro". Nada menos amoroso do que um assassinato em primeiro grau por motivo torpe. E nós dançando lentamente de olhos fechados...

De qualquer forma tal descoberta não anula as agradáveis lembranças que tenho desta e de outras inesquecíveis canções. No entanto, por via das dúvidas, procurarei permanecer ignorando o significado delas. Melhor não arriscar. Da mesma forma que aconselho aos jovens da atualidade a não se arriscarem em incursões fora de sua área de segurança atrás de possíveis festinhas. Não que atualmente exista interesse em buscar bailes para dançar coladinho. Acho que isso não volta mais. Mas é fato que naquele tempo não havia tantos tiros. Hoje não é bem assim. Sem falar que os feminicídios aumentaram. Ou são mais relatados atualmente. Mas jamais gerarão músicas românticas. Mesmo para quem não saiba inglês.

Comentários

  1. Meu amigo Marcos Cardozo de Oliveira, do Jornal Metamúsica! Você continua sendo um cavalheiro também em em seus textos. Deve ter se segurado muito para não dizer como chamávamos essas músicas: MELA CUECA! KKKKKKKK

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  2. Parabéns pelo lindo texto. Viajei no tempo. Jamais imaginei que essa música tratasse disso.

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  3. O que? Não acredito! Meu Deus, eu amo essa música!!!! O que faço agora?

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  4. Essa sacada da canção feminicida romântica é inacreditável! Muito boa essa história.

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  5. Isso é um causo da história da música brasileira pouco contado. Muito interessante.

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  6. Parabéns por relembrar as incursões as festas dos vizinhos e dos bailes que tinham como característica a dança coladinho e a luz negra! Parabéns Marcos!

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  7. Desculpe aí, primo Marcos, mas ri muito! Ri pela ignorância que tínhamos do idioma e dos grupos "ingleses/americanos" imitação faguta. Quanto aos bailinhos quase não me deixavam ir e se ia era só derrota. Rsrsrs.
    Quanto a sua escrita e o modo como descreve suas memórias, só tenho elogios. 👍😘

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    1. Obrigado prima! Muita gente me falou que riu também. Rsrs... Realmente este caso é uma tragicomédia musical. :)

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