Kiss: Os traumas de um astro

Décadas de 1960 e 1970. Não posso dizer que minha infância e adolescência tenham sido ruins, em que pesassem as extremas dificuldades financeiras da família. Fato aliás que continua afligindo a grande maioria dos cidadãos deste país (como diria a velha canção popular, tentando se livrar da hereditária situação precária: "o motivo todo mundo já conhece, é que o de cima sobe e o de baixo desce"). Tirando a preocupante frágil saúde de minha mãe (que partiria prematuramente) e de um dos meus irmãos que havia nascido com um tipo de autismo de último grau - não habitava mentalmente esta dimensão - e que morreria aos 12 anos, os problemas eram driblados. Como se fosse a Copa de 70. Sobretudo havia a alegria das brincadeiras e futebol ao ar livre com a vizinhança.

Salto algumas temporadas e estou agora em 1983, em pleno gramado do Maracanã, assistindo com meu irmão ao nosso primeiro grande show internacional. Era a banda norte americana Kiss, da qual somos fãs até hoje. Tratada como "infantil" e "circense" por muitos, o grupo liderado por dois judeus - Paul Stanley e Gene Simmons - tem uma capacidade de criar melodias e refrões deliciosamente "pegajosos", tarefa que parece simples mas é exatamente o contrário, sobretudo se falamos de Hard Rock. E há toda aquela mise-en-scène que os transforma em seres fora de nossa realidade cotidiana. Realidade que estava ali fora do gramado, por exemplo, quando fomos abordado na entrada por fundamentalistas religiosos que nos diziam para não assistir ao show uma vez que K.I.S.S. era uma sigla que significava "Kids In Service of Satan". Sim. Religiosos fundamentalistas sempre existiram, embora isso passe bem longe do Divino. Neste caso acho que aquele (esse) povo nunca beijou ninguém. Nem nunca se divertiu de verdade.

Eu assistia ao show bem perto do palco, contemplando os "(anti?)heróis transdimensionais" cujo objetivo era tão somente proporcionar momentos de alegria aos fãs. Eventualmente me perguntava, afinal, quem eram eles? Que vida maravilhosa levavam, que infância e adolescência tiveram para, tão jovens (a banda iniciou as atividades em 1973), formar o grupo? Finalmente algumas respostas foram dadas quando o cantor, guitarrista e co-fundador Paul Stanley resolveu contar tudo em sua autobiografia "Face the Music - A life exposed", no Brasil "Uma vida sem máscaras" (2015, Editora Belas-Letras, 560 páginas). 

Para minha surpresa as coisas não foram nada fáceis em sua infância, adolescência e mesmo na idade adulta já com o sucesso do grupo. Paul nasceu com uma rara deformidade na orelha direita, uma doença chamada microtonia, que além do aspecto físico provoca surdez, o que afetava seu senso de direção. O resultado foi ser vítima, durante toda a infância, de perseguição por parte das outras crianças o que o fez evitar interações sociais, drama que esteve presente por boa parte de toda sua vida.

"Houve um tempo em que esta maquiagem era uma máscara que escondia o rosto de um jovem cuja vida até então havia sido triste e solitária. Nasci sem a orelha direita (e também sou surdo deste lado) e dentre minhas primeiras memórias as mais dolorosas são aquelas de outras crianças me chamando de "Stanley, o monstro de uma orelha só"."

Seria menos traumático se, em casa, tivesse apoio da família. Não era assim. Os pais não davam a mínima para seu problema. Eles também tinham suas próprias infelicidades que os acompanhavam desde sempre. Para complicar, sua única irmã - dois anos mais velha que ele - tinha transtornos psiquiátricos e uma vez chegou tentar matá-lo com um martelo! Lembram da cena do machado na porta do filme "O iluminado" de Stanley Kubrick? Mais ou menos isso. Claro que relatos assim, de uma pessoa pública, despertam controvérsias - como na autobiografia de Woody Allen - mas me atenho aqui ao que está no livro.

Sem me aprofundar para evitar spoilers, resta pelo menos dizer que a superação total de seus traumas só veio em 1999. Milionário desde fins dos anos 70, somente naquele ano teve sua "epifania", quando atuava no papel principal da montagem de "O Fantasma da Ópera" de Andrew Lloyd Webber em Toronto, Canadá. Na cena final o protagonista revela seu rosto horrendo para a amada, o que o tocou profundamente. Suas palavras: "Antes de uma das apresentações em que interpretei o Fantasma, chegou no teatro uma carta endereçada a mim. Havia sido escrita por uma mulher que vira o espetáculo recentemente. 'Você parece se identificar com o personagem de tal maneira que nunca vi acontecer com outros atores', escreveu. Ela disse que trabalhava para uma organização chamada AboutFace, dedicada a ajudar crianças com anomalias faciais. 'Será que você teria como participar?'". O detalhe é que Paul nunca tinha falado sobre seu problema. Ele aceitou o convite e finalmente se abriu para as crianças e para os pais dela sobre os seus traumas, sentindo-se libertado ao ajudar os outros com o seu relato. No ano seguinte tornou-se o porta-voz do AboutFace. Descobriu que ajudar os outros promovia sua própria cura.

Pulo muitas temporadas agora. Estamos em 2022. Termino de ler e concluo que problemas, traumas e preocupações não são privilégios de simples mortais. O herói Starchild - nome adotado para o seu personagem na banda - só conseguiu se resolver aos 48 anos quando, há décadas, já tinha fama e fortuna. Assim mesmo com um empurrão do destino, das felizes coincidências. 

Este anos o Kiss retorna ao Brasil em sua última tour mundial. Paul está com 70 anos, Gene Simmons, 72. Desta vez não irei. Meu filho me representará. Talvez eu queira manter na memória a fantasia lá de 1983, quando vi ídolos musicais pairando acima das vicissitudes da vida, semideuses enviando energias para enfrentarmos nossos próprios desafios.

"Eles cantavam sobre uma vida gloriosa com a qual comecei a sonhar. Todas aquelas canções sobre um conceito idílico me atingiam emocionalmente. Deixavam-me morrendo de vontade de ser adolescente e me transportavam para um lugar maravilhoso, onde a angústia da vida dizia respeito às relações e ao amor. Cara, essas pessoas tinham vidas perfeitas!"

Comentários

  1. Olá Marcos Metamúsica! Grande figura respeitada! Seu estilo de escrita está cada vez melhor. Eu não tinha me animado em ler esta biografia mas depois do seu texto vou comprar. Você leu do Gene Simmons? Sabe dizer se é boa também?

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    1. Obrigado Luiz Rother (parente do lendário alemão Michael Rother?). Eu não li a do Gene mas já estou com ela. Parece que ele relata desde a infância em Israel. Chama-se “Kiss: por trás da maquiagem” (“Kiss and Make-Up: A Memoir” no original de 2001), publicado no Brasil também pela editora Belas-Letras no ano passado. Dica: tem uma entrevista legal no YouTube que a Bruna Lombardi fez com Paul e Gene em 1994.

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  2. Legal meu camarada. Eu li uma vez que a irmã dele detonou ele nas redes sociais, é verdade?

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    1. Sim. Confira neste site: https://igormiranda.com.br/2021/11/paul-stanley-pai-morte-criticas-irma/
      É importante lembrar que Paul escreveu uma espécie de complemento de sua biografia no livro “Quando as cortinas se fecham”: “Agora aprecio meu passado pelo mesmo motivo que me permitiu finalmente escrever minha história em Uma Vida sem Máscaras; o mesmo que fez meus relacionamentos, com pessoas como meu pai, evoluírem desde que o livro foi lançado. Nós nos escondemos quando não chegamos a um acordo com nosso passado.”
      “Dando sequência a seu best-seller do New York Times, Uma Vida sem Máscaras, o icônico vocalista e guitarrista do Kiss dá um passe livre de acesso completo a sua vida pessoal, com a experiência, alcançada a duras penas, de uma lenda da música. Paul Stanley não é um rockstar típico. Sua abordagem particular da arte e da música como negócio — uma visão criativa combinada a uma ética sólida — resultou em uma longevidade inédita em uma indústria caótica. Agora, com esse raro vislumbre dos bastidores, a estrela revela o que aprendeu em uma vida como força motriz do Kiss e como aplicou sua sensibilidade peculiar a todos os aspectos de sua vida — do sucesso à paternidade, saúde e felicidade. Quando as Cortinas se Fecham — Minha Vida Além do Palco mostra o que está por trás da máscara, conforme Stanley compartilha os detalhes fascinantes de sua vida — sua rotina de exercícios, filosofias de negócios e como um astro do Rock and Roll Hall of Fame preserva sua inspiração, paixão e alegria após quase 50 anos de shows com ingressos esgotados e 100 milhões de álbuns vendidos. Este é um livro para fãs que amam uma vida grandiosa, mas que também querem assumir as rédeas da vida e fazer acontecer. “Parte um livro de autoajuda do mundo do rock, parte um tutorial para a vida. Mesmo quem não é fã se beneficiará com a descoberta de todas as facetas que tornam Paul o mito que é. Cara, eu mesmo peguei algumas dicas! Suas ideias sobre negócios, família, relacionamentos e música são de uma sabedoria digna de seu status de integrante do Hall of Fame.” — TOM MORELLO, ativista e músico do Rage Against the Machine “Um livro direto e perspicaz, que mostra que mesmo uma vida grandiosa nem sempre é fácil.” — SCOTT TUROW, autor de Acima de Qualquer Suspeita, best-seller do New York Times”

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  3. Oi Marcos. Estava sentindo falta de suas crônicas. Muito interessante. Ninguém imagina o que há por trás da maquiagem. Mas no livro ele conta toda a história do Kiss?

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    1. Olá Alice. Obrigado. Sim. Não foi o propósito da crônica entrar nos detalhes da trajetória da banda. Mas, também por isso, vale a pena se você for fã. Mais de 500 páginas de muitos segredos do grupo. O do Gene Simmons também. Não me interessei pelos livros do Peter Criss e Ace Frehley pois aí já é Kiss demais. Rsrs...

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  4. Oi, Marcos. É muito bom ler seu texto! Melhor ainda é ver por detrás das palavras, sua sensibilidade!
    Quando vamos conseguir deixar claro que "deformidades" são características?
    Grande abraço!

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    1. Pura verdade Maria Emilia. Obrigado por sua participação e gentis palavras. Grande abraço!

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  5. Marcos, é sempre muito bom ler seus textos. Estão melhores a cada dia. Abraços

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    1. Muito obrigado pelas palavras que incentivam Márcia! Abraços!

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