Viver é melhor que sonhar

Corriam os primeiros anos da longínqua década de 1980. Pré história, considerando a Era da Internet (EI) que tomaria força a partir do final dos anos 90. 

Foram nesses dinossáuricos tempos que iniciei minha trajetória profissional em trabalho offshore. Jovem procedente da base da piramide social que mal tinha dinheiro para a passagem de ônibus, conquistava finalmente a liberdade econômica e mais: a sensação de estar contribuindo para o país, atuando na maior empresa da América Latina. 

O trabalho exigia deslocamento rápido entre plataformas ao longo do período de duas semanas e isso era feito com um helicóptero "bolha" (apelido dado por causa do formato), pequena aeronave onde iam apenas eu e o piloto.

Nesses voos eu olhava o belo oceano infinito abaixo e me lembrava que poucos anos antes eu nem sonharia com aquela possibilidade. 

Esse sonho profissional não durou muitos anos pois optei pelo retorno à terra firme. Foi um período complicado. Me cobrava a intensidade e o amor ao trabalho dos primeiros anos no mar, que havia perdido. No final concluí que fatores externos haviam provocado uma mudança de perspectiva. Mas até chegar a esse nível de entendimento passei por maus momentos em que tive vontade de largar tudo e sumir no mundo. Imaginem. Largar um emprego dos sonhos de um menino pobre.

Tal sensação não foi privilégio meu. Desconfio que a maioria das pessoas, em diferentes momentos da vida e por motivos diversos, também teve "vontade de meter a cara no mundo e nunca mais aparecer", como já dizia o Oswaldo Nunes em um samba carnavalesco de refrão malicioso de 1978.

Normalmente isso acontece na juventude. Lembrem-se dos clássicos "O Apanhador no Campo de Centeio" (1951) de J. D. Salinger e de "On The Road" (1957) do beatinik Jack Kerouac, que influenciaram uma geração, desaguando nos movimentos de contracultura de fins dos anos 60 e início dos década seguinte. Tais tentativas de "mudar o mundo" acabaram sendo massacradas ou absorvidas pelo sistema.

No Brasil a contracultura praticamente não existiu por conta da repressão da ditadura militar, notadamente a partir do AI-5 de 1968. Jovens estudantes e artistas - principais protagonistas dessa tomada de posição - estavam mais preocupados em driblar a censura ou escapar das perseguições.

A minha lembrança do fato narrado no início desta crônica deriva da conclusão da leitura do livro "Viver é melhor que sonhar - os últimos caminhos de Belchior" (264 páginas, Sonora Editora, 2021). Em termos musicais tenho a impressão que a principal referência àqueles ideais contraculturais veio de uma forma tardia em um disco de 1976 desse então jovem cearense do município de Sobral. "Alucinação" - o nome do álbum - tornou-se um dos maiores clássicos da MPB. Falei de forma tardia mas é bom lembrar que Belchior já havia conquistado o primeiro lugar no IV Festival Universitário de 1971 com "Hora do Almoço" e escrito a letra de "Mucuripe" em 1970, onde já dizia "vida, vento, vela, leva-me daqui". O título do livro vem da clássica canção "Como nossos pais", eternizada na voz da incrível Elis Regina.

Irrequieto, Belchior cursou Filosofia, Medicina e se isolou em um mosteiro para uma possível vida religiosa reclusa que não foi à frente. Seu negócio era partir. Primeiros sinais da vontade de sumir no mundo.

O citado (e ótimo) livro dos jornalistas Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti é um road book que percorre as trilhas por que passou Belchior em seus dez últimos anos de vida, quando esteve "desaparecido" por inusitados caminhos do Uruguai e Rio Grande do Sul. Diferente da maioria, o seu "pé na estrada" se deu aos 60 anos, quando abandonou carreira, negócios, família, amigos e patrimônio que tinha. O livro tenta responder a questão que até hoje intriga os seus fãs: Por que Belchior agiu assim? 

O texto da contracapa contextualiza o leitor antes de mergulhar no mistério investigado: "Antonio Carlos Belchior é autor de um dos gestos mais intrigantes da história da música popular brasileira. Artista repeitado, carreira de sucesso, padrão de vida confortável, cercado de amigos e de amores. Aos 60 anos, deixou tudo para trás, rumo a uma jornada incerta e anônima, que terminaria com sua morte. Não explicou a ninguém o motivo do seu desaparecimento. Percorreu diversas cidades, viu de longe o patrimônio ir embora, foi perseguido pela imprensa. Dormiu em locais abandonados, dependeu da caridade de desconhecidos e não retrocedeu".

Curioso como um fato atual - a leitura do livro - nos conecta com acontecimentos vividos que nem nos lembrávamos mais. Em retrospecto pode-se observar que o artista sinalizava desde o início, em suas ações na juventude e nas composições, uma tendência comportamental de insatisfação com o status que se apresentava como modo de vida. Uma das saídas era desaparecer. Não o fez enquanto era apenas um rapaz latino americano sem dinheiro no banco e vivia como os seus pais. Mas, fiel ao ser inquieto, veio a realizar na última década de vida. Pé na estrada aos 60. Morte aos 70. 

Longe da inquietude e genialidade de Belchior, a única estrada que costumo pegar é a BR-101 em viagens curtas de menos de 200 Km, com a família. Apesar de ter feito tudo que fiz ainda sou o mesmo e vou vivendo conforme os padrões vigentes. No entanto, aos 62 anos, ressoa na mente a observação certeira do cearense, "o que há algum tempo era jovem e novo, hoje é antigo e precisamos todos rejuvenescer".

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