Nugent, Clapton, Roger, Chico, Vinho e Pandemia

Tem um LP na minha coleção que não vejo há tempos. Deve estar em algum canto de alguma estante no meio de centenas de outros. LP significa Long Play. São aqueles discos de vinil que as pessoas colecionavam há 250 anos aproximadamente e utilizavam para ouvir música. Este sumido eu não faço questão de encontrar. É de um guitarrista e cantor americano chamado Ted Nugent cujo título é "Cat Scratch Fever", de 1977. Estranho para um colecionador ter um item desaparecido que ele nem liga. O fato é que Ted é um reacionário militante do Partido Republicano que defende pautas controversas. No mínimo. Vejamos o que diz a Wikipedia: "Nugent é um militante do Partido Republicano dos EUA e de várias causas conservadoras associadas particularmente aos direitos de possuir armas e direitos dos caçadores. Ele é um apoiador do ex-presidente Donald Trump e fez uma série de declarações críticas ao ex-presidente Barack Obama, uma das quais foi percebida como potencialmente ameaçadora e levou Nugent a ser investigado pelo Serviço Secreto. Suas opiniões foram consideradas racistas." Precisa dizer mais alguma coisa? Por essas e por outras eu o chamo de Ted Nojento.

Separar a arte do artista é um tema que tem sido motivo de muitas discussões acaloradas. A obra é mais importante do que as posições e ações ao longo da vida? Acredito que quando existe um distanciamento de séculos a coisa fica mais fácil. Eu não sei sobre a vida particular do pintor e arquiteto italiano Raphael (Raffaello Sanzio da Urbino). Isso fica lá no Século XV. Posso até pesquisar como curiosidade e referência histórica do seu tempo, nada mais. Mas a obra dele continua viva e isso é o que interessa.

A coisa se complica quando entramos em território contemporâneo. Sobretudo neste exato momento histórico em que posições extremadas são livremente compartilhadas na Internet e parecemos estar o tempo todo combatendo o outro lado. Especificamente na área da música popular tenho tentado separar as coisas, pois não é confortável ser obrigado a parar de ouvir algum ídolo que me acompanha ao longo da vida com suas lindas canções ou performances instrumentais inesquecíveis. Mas, porém, contudo, todavia, não tenho obtido sucesso nesta empreitada. Acho que é porque, inconscientemente, não admito que um artista do rock, por exemplo, tenha posições reacionárias. Rock é, por sua própria essência, eternamente jovem e contestador das pautas "conservadoras", do status quo. Roqueiro reaça é um traidor da causa evolutiva da 'moral e bons costumes'. Motociclistas também. Mas esses não lidam com arte. Nem cristãos. Embora Jesus tenha sido um dos mais progressistas da história.

Entro neste tema porque fui surpreendido esta semana com matérias acerca da reclamação que o grande Eric Clapton fazia sobre o fato de estar se sentindo meio que abandonado por amigos e muitos fãs. O motivo: declarações negacionistas que dera contra a vacina (apesar de ter tomado) e sobre outros temas, tratando-os da mesma forma "conservadora". Sou fã deste genial guitarrista desde a época em que muros de Londres apareciam pichados com a frase "Clapton is God". Sua autobiografia é emocionante,  dramática e eu sempre recomendei a leitura. Enólogos costumam dizer que os bons vinhos envelhecem bem. O que não nos livra de abrir uma antiga garrafa e nos depararmos com a bebida avinagrada. Ainda não sei o que farei com meus discos do Clapton mas ainda tenho esperança de uma mudança de posição. Talvez o problema maior seja minha ardilosa imaginação: se fosse brasileiro, de que lado ele estaria?

Mesmo não sendo brasileiro, Roger Waters, baixista, principal letrista e membro fundador do lendário grupo britânico Pink Floyd sabe tudo sobre o Brasil e a situação que estamos passando. Aliás ele sabe tudo e participa ativamente a favor das pautas progressistas e humanitárias no mundo todo. Em sua visão a sua arte e o fato de ser conhecido mundialmente o faz responsável por dar a sua parcela para melhoria deste planeta, sobretudo no que se refere aos mais fragilizados e perseguidos. Em um encontro a favor do ativista Julia Assange, também esta semana, ele chegou com um papel na mão. Era um email do CEO do Facebook e Instagram, Marc Zuckerberg, lhe fazendo a proposta de comprar os direitos de uso da música "Another Brick in The Wall Part II", um verdadeiro hino contra posições fascistas. Disse Waters: “É uma carta do Mark Zuckerberg para mim. Chegou hoje de manhã com uma oferta enorme, enorme de dinheiro e a minha resposta é: ‘Vá se f*der! Nem f*dendo!’ Eu só exponho isso porque há um movimento incessante deles em tomar o controle de absolutamente tudo”, e continuou : "Mark Zuckerberg e sua equipe querem tornar o Facebook e o Instagram ainda maiores e mais poderosos do que já são, censurando a todos nós nessa sala e impedindo que a história de Julian Assange chegue ao público e que as pessoas questionem: ‘Como assim? Não, chega!'”. Concluiu dizendo que Marc Zuckerberg, fundador do Facebook, se tornou um dos idiotas mais poderosos do mundo. Roger Waters representa aquele vinho maravilhoso que vai ficando melhor com o passar dos anos. É dele o show mais emocionante que vi em minha vida, junto com minha família: no Maracanã, às vésperas do segundo turno das eleições de 2018. Ele estava do nosso lado e não poderia ser diferente. Basta ler as canções do Pink Floyd.

Ontem, 19 de junho de 2021, o Brasil chegou a trágica marca de meio milhão de mortos pela pandemia da Covid-19. Como estamos cansados (e muito cansados) de saber, os motivos deste quase recorde mundial (infelizmente parece que vamos chegar lá), grande parte dessas perdas poderiam ter sido evitadas não fossem as ações e omissões deste arremedo de governo federal que temos. A paralisia quase catatônica em que atravessamos 2020 parece dar sinais de começar a se dispersar com o advento da CPI e dos eventos anti-bolsonaro que estão pipocando, como foi o de ontem em todas as partes do país. Pois foi exatamente nesse sábado que entra em nosso relato o quarto personagem musical desta crônica. Na data em que registrava seus 77 anos, o gigante Chico Buarque deixou as comemorações de lado e foi para o centro do Rio participar dos protestos contra o desgoverno que nos levou a este ponto. Esse é outro que nos dá orgulho de sua arte musical, que manteve ao longo de toda sua vida uma trajetória consistente em defesa da liberdade e da vida. Outro vinho raro que enriquece o nosso paladar em favor da existência e do amor ao próximo. Vê-lo ontem chegado na Avenida Presidente Vargas, ao lado do povo, foi emocionante.

Definitivamente, os discos que vou ouvir nesta tarde de domingo, que se anuncia fria, são do Pink Floyd e do seu Francisco Buarque. Acompanhado de um leve vinho rosé, que me fará mentalizar pela alma desses 500 mil irmãos que se foram.

Comentários

  1. Temos também muitos bons vinhos entre nossos amigos que apesar de não serem artistas alguns são únicos e estão próximos o bastante para ajudar a trilhar o caminho do bem! Já outros se revelaram a tempo de vermos o que realmente se escondia por trás deles!

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    1. É verdade Aldo. Boas referências e muitas péssimas surpresas. Mas vamos em frente! Grande abraço!

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  2. Maravilhosa crônica Marcos. Tudo que gostaria de dizer!

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