Casas Abandonadas


A música me acompanha quase todas as horas do dia ou, pelo menos, sempre que possível. Por causa dessa paixão uma vez tentei ser músico. Procurei um antigo professor maestro e contratei aulas de piano. Queria ser um tecladista tipo Rick Wakeman. Não demorou para perceber que jamais chegaria aos pés do ídolo que, além de nascer com o dom que eu não tinha, havia estudado desde bem jovem no tradicional Royal College of Music de Londres. A conclusão é que, se me dedicasse muito, poderia chegar a ser, no máximo, um músico medíocre. Desisti. Superei a frustração editando por seis anos um jornal especializado em música, já que tinha facilidade em escrever. Foi o que pude fazer. Estratégias que vamos montando ao longo da vida.

Não foi a primeira vez. Em fins dos anos 70, ainda adolescente, passei em concurso para a Escola Técnica Federal. Um colégio ideal para quem era das camadas base da pirâmide social como eu. Minha área não era a das ciências exatas, assim a opção natural foi a do curso de Edificações, que poderia ser um trampolim para o superior de Arquitetura. Projetar casas que as pessoas iriam transformar em lar era um desafio tão agradável como criar música. O problema é que havia alguns amigos no curso que desenhavam e projetavam como se fosse uma coisa natural. Para mim não era. Sofria para dar conta do recado nas aulas especializadas. Meu traço era bem ruinzinho. Achei que seria um Arquiteto apenas mediano, se muito. Concluí o curso mas desisti do sonho. Mas não o da padaria que devoro até hoje, apesar da glicose não estar em bons níveis. Ok, me lembrei da infame piada com a clássica declaração do John Lennon ("The Dream is Over"), o que comprova que meu dotes de cronista também não são lá essas coisas.

Faço essas digressões para situar o desavisado leitor no tema central desta crônica: porque tenho uma certa atração por casas abandonadas? Ora direis, por óbvio, "por causa de sua frustração". Freud facilmente explicaria. Mas o pai da psicanálise se debruçou sobre temas mais complexos, convenhamos.

Quando deixo o carro de lado - e tenho feito isso com maior frequência, tomando os devidos cuidados pandêmicos - e caminho pelas ruas, as fachadas das casas e edifícios bem como jardins bem cuidados são pontos de minha atenção e análise (já que não posso entrar na casa das pessoas). No entanto, quando vejo uma casa desabitada com jeito de estar assim por um longo período, sobretudo as que tem traços arquitetônicos interessantes, é onde paro e, se estiver com o Smartphone, tiro fotos. É que fico me perguntando que histórias podem estar por trás daquele abandono. Quem morou ali, quem projetou, por que deixou de ser um lar para ser apenas uma obra de engenharia civil deteriorando no espaço-tempo?

Minha imaginação vai longe a ponto de bolar um projeto literário de contos. Cada casa fotografada teria uma história criada - os capítulos teriam nomes de músicas - detalhando desde a compra do terreno, desenvolvimento do projeto, a história da família que ali habitou, até chegar ao ponto central que levou ao abandono. Algo épico com início, meio e fim. Talvez como a obra "A Queda da Casa (ou do Solar) de Usher" do Edgar Alan Poe mas não necessariamente tão sombrio como era o estilo do genial escritor americano. Se bem que provavelmente não daria para fugir muito disso, considerando a temática.

Os contos poderiam ser sobre questões legais e financeiras. Inventários podem levar anos para serem concluídos. Claro que antes disso existiu a morte do patriarca e da matriarca. Sentimento de perda de entes queridos. Mas nem sempre.

E se falo de morte e de casa abandonada me vem o tema espiritualista. Não necessariamente de mansões "mal assombradas". Pode ser que boas almas estejam por ali, habitando de uma forma não física o local que possíveis herdeiros deixaram para trás. Essa ideia daria um filme também. Aliás já deram alguns. Portando essa minha conjectura está longe de ser original.

Escapando de temas mórbidos - mas nem por isso menos drástico - poderíamos imaginar um jovem apaixonado que construiu uma bela casa para morar com seu amor mas que foi trocado por outro às vésperas do casamento. Não fez nenhum gesto trágico mas, desiludido, abandonou a casa e a cidade para sempre, sem sequer procurar uma corretora para colocar à venda.

Pensando por um lado mais preocupado com questões sociais, não se pode deixar de questionar sobre a necessidade de tantos sem teto ao relento, quando existem imóveis abandonados por décadas. Aliás por diversas vezes em minha observações vi sinais de que muitos desses locais abrigam secretamente, pelo menos à noite, muitos desses fragilizados pelo sistema. Quem sabe em muitos casos uma intervenção estatal poderia, legalmente, dar uma solução para amenizar a situação desses moradores de rua, destinando muitos desses imóveis para fins benemerentes, antes que se desintegrem com o tempo. Seria um final feliz para a casa. Talvez não para os herdeiros, se existirem.

Provavelmente essa ideia do livro não dê em nada. Ou não (como diria Caetano). Em recente entrevista, Itamar Vieira Júnior disse que levou 20 anos com a ideia de "Torto Arado" até que conseguisse transformar em livro. E o resultado foi o que estamos vendo, um livro que já nasceu clássico.
Meu amigo Winston Rangel também levou tempo semelhante até concluir seu ótimo recém lançado "A Casa do Espírito Santo". 
Aos 62 anos, com uma perspectiva hiper otimista de ter mais uns 30 de vida útil, pode ser que venha a se tornar realidade. A conferir.

Enquanto isso, rendeu esta crônica mediana. Já é alguma coisa.


Comentários

  1. Muito interessante. Nunca havia reparado nisso. Interessante sua forma de abordar coisas sem muita importância. São os olhos de um excelente cronista que observa as coisas que nos passam despercebidas. Parabéns!

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  2. Muito bom! Já sei que agora vou ficar olhando com outros olhos essas casas abandonadas. Kkkk

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  3. Marquinho, tudo fica interessante nas suas escritas! :)

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  4. Também, sempre me chamaram a atenção

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  5. Muito boa sua crônica. Também fico pensando quantas histórias estão contida nessas casas.

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    1. Vamos usando nossa imaginação... Um grande abraço Paulo!

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