O que está acontecendo? 50 anos de "What's Going On" de Marvin Gaye


Mãe, mãe

Há muitas de vocês chorando

Irmão, irmão, irmão

Há muitos de vocês morrendo

Você sabe que nós temos de encontrar um meio

Para trazer um pouco de amor hoje

Fim de tarde em um dia desta semana que vai chegando ao seu final. Já realizadas algumas tarefas previstas para o dia, fui caminhado com meu filho até o mar. Levei o celular e o fone. Sentar na areia, ouvir o barulho e contemplar o mar é sempre reconfortante. Então para que celular? É que sempre tem uma imagem linda que gosto de registrar. O fone raramente levo, para não atrapalhar a música das ondas. Desta vez foi uma exceção.

Música sempre me faz companhia. Só quando não dá mesmo. Recentemente, por exemplo, tive de ir outra vez ao banco, que anda pisando na bola. Horas de espera. Com o celular. Cansei de redes sociais e notícias e resolvi ouvir música. Cadê os fones? Esqueci. Coloquei o volume no mínimo e encostei no ouvido, feito radinho de pilhas de minha infância. Não teve jeito: levei um esporro educado do guarda, pois o som estava vazando. Não pode. Prevenido é quem não esquece os fones de ouvido. Antigamente era o guarda-chuva, que caiu em desuso pois ou não chove ou cai um temporal que ele não consegue encobrir. Se bem que ele está recuperando seu prestígio, agora como guarda-sol, considerando as temperaturas desérticas deste verão. Embora chova levemente no momento em que dou este mambembe depoimento.

Pai, pai

Nós não precisamos agravar

Veja, guerra não é a resposta

Pois apenas o amor pode conquistar o ódio

Você sabe que nós temos de encontrar um meio

Para trazer um pouco de amor aqui hoje

Ultimamente não tenho ouvido discos de forma completa como manda minha tradição. A opção são as playlists que preparo no Spotify cujo formato já odiei mas agora adoro. Desconfio que isso faça parte de uma síndrome ampla relacionada ao chamado DNA (Data de Nascimento Antiga). É que talvez haja uma sinalização do inconsciente acerca do tema "tempo restante". Não dá para perder minutos preciosos com músicas - ou tudo o mais - que não sejam as que realmente importam. Faço então seleções temáticas de là creme.

Todavia senti falta disso. E o plano era exatamente ouvir um álbum completo em frente ao mar. Por isso os fones. Mas escolher qual dentre as centenas de obras musicais que me vem à mente? Ainda sem conectar o som fiquei olhando os movimentos ondulares ao suave sol, com uma brisa fresca que batia em meu rosto. Semi-poesia barata isso, mas era fato naquele momento.

Piquetes e cartazes

Não me puna com brutalidade

Fale comigo

Então você poderá ver

O que está acontecendo

Sim, o que está acontecendo

Diga o que está acontecendo

Eu direi o que está acontecendo

Tentando esvaziar a mente achei que o ideal seria ouvir um disco instrumental minimalista, que são ótimos para instantes de meditação. Ao desbloquear o celular automaticamente abriu o Google com as últimas noticias sobre o Brasil e o mundo: pandemia, desgoverno, negacionismo, redes de ódio, milhares de mortos, genocídio no Iemen... Me veio a pergunta: O que está havendo? O que está acontecendo com as pessoas? Com o mundo? Não sou apenas eu fazendo esta indagação.

Tal questão que ecoou me fez esquecer dos planos de ouvir ambient music pois lembrei do título de um disco que não ouvia há tempos e que sempre adorei por considerar uma obra-prima da soul music: "What's Going On" ("O que está acontecendo") de Marvin Gaye. O detalhe é que exatamente neste ano de 2021, o álbum completa 50 anos de lançamento. É de 1971. Decidido. Era esse então a obra completa que iria ouvir naquele final de tarde. Coloquei os fones e selecionei no streaming a edição de luxo comemorativa "50th Anniversary", cheia de faixas bônus. Enquanto começava a audição, dei uma pesquisada para lembrar um pouco da história das canções e, quando digitei o artista e o álbum no site de busca, me deparei com uma surpresa, uma informação que eu não sabia.

Ah, misericórdia, misericórdia de mim

Ah, as coisas não são o que costumavam ser, não, não

Para onde foram todos os céus azuis?

Veneno é o vento que sopra do norte e do sul e leste

Em 2003 a importante revista internacional Rolling Stones fez uma grande pesquisa com críticos, músicos e leitores e publicou quais eram os 500 melhores discos da história. Aquela edição foi um sucesso e a lista foi comentada e questionada por anos. Pois bem, em 2020, talvez por conta da paralisação da pandemia, a publicação resolveu investir em um outro levantamento e "atualizar" o ranking. Eu não tinha visto a matéria e me surpreendi com muitas mudanças que ocorreram. Vejam só a coincidência (será?): o disco que escolhi para ouvir naquela tarde havia sido colocado, nessa nova pesquisa, como sendo o melhor disco da história, desbancando "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band" dos Beatles, da lista anterior.

Me lembrar deste disco de 50 anos ao ver tantas notícias negativas no momento em que estamos atravessando, mostra o porque dele ter ficado no topo da lista. Soma-se a isso a incrível realização musical no que se refere às construções melódicas, harmonias, arranjos, interpretação de Marvin e sobretudo o clima que perpassa toda a obra.

Quem realmente se importa?

Quem está disposto a tentar salvar um mundo

Que está destinado a morrer?

Quando eu olho para o mundo, isso me enche de tristeza

As criancinhas de hoje vão realmente sofrer amanhã

Oh, que pena, uma maneira tão ruim de viver

Todos somos culpados, não podemos deixar de viver

Marvin Gaye, filho de um pastor protestante, começou na Motown - mais importante gravadora de Soul e Rhythm and Blues da história, criada e dirigida com mãos de ferro por Berry Gordy Jr. - nos anos 60, cantando peças românticas, marca registrada da gravadora que tinha toda uma estratégia definida para chegar aos consumidores brancos. Seu reconhecimento maior veio a partir de uma séries discos que gravou em dueto com a cantora Tammi Terrell na segunda metade da década.

E foi exatamente nessa parceria que aparentemente Marvin Gaye começou a mudar seu foco acerca de sua música e da realidade que o cercava. Certa vez, em uma apresentação em 1967, Tammi desmaiou em seus braços. O diagnóstico foi tumor maligno no cérebro. Ela tinha 21 anos. Continuaram gravando juntos até 1970, quando a situação piorou. Segundo consta, no último disco que gravaram, ela quase não tinha condições de cantar mais e Marvin reclamou com Berry Gordy que precisavam preservá-la. Berry teria dito que eram essas gravações que estavam pagando o tratamento dela.

Oh, não fale mal de meu Pai

Porque Deus é meu amigo

Jesus é meu amigo

Ele nos ama independentemente de nós sabermos ou não

Ele simplesmente nos ama

E ele vai perdoar todos nossos pecados

E tudo que ele pediu em troca, foi nós darmos amor uns aos outros

Está aí a primeira conexão com o momento atual. Estatísticas mostram que o maior número de óbitos por Covid nos EUA está na população negra que tem doenças pré-existentes mas nunca conseguiu se tratar por conta do caro sistema de saúde ali, onde não existe um SUS. 

A morte de Tammi deixou Marvin devastado: "Durante o funeral da parceira, Marvin estava tão sensível que ele conversava com o corpo de Tammi como que esperando por uma resposta dela.". Mergulhou em uma depressão que o deixou sem se apresentar por um bom tempo, apenas lançou dois discos com regravações de músicas de outros autores e pensou seriamente em abandonar a carreira.

Além da perda da amiga ele se questionava acerca da importância da música que fazia, considerando o momento que vivia a América, relativos à guerra do Vietnã, racismo, distúrbios sociais que aconteciam, etc. "Com o mundo explodindo à minha volta, como é que eu vou continuar cantando canções de amor?". Para complicar ainda mais, ele também enfrentava turbulências em seu casamento com Anna Gordy, irmã do dono da Motown. Sua crise existencial começou a forjar o que viria a ser a sua obra-prima.

Ame sua mãe, ela lhe deu a luz

Ame seu pai, ele trabalha pra você

Ame sua irmã, ela é boa pra você

Ame seu irmão, ele é seu irmão

Oh, não fale mal de meu Pai, ele é bom para nós

Deus é meu amigo

Jesus é meu amigo

Quando você o chamar para pedir clemência

Ele vai ser misericordioso, meu amigo

Com sua mente e sua alma tomada por ideias mais amplas acerca da vida e dos temas políticos, junto com Renaldo Benson (do grupo Four Tops) e Al Cleveland compôs "What's Going On" e a gravou ainda em 1970. Foi apresentada ao dono da gravadora para ser lançada como single (compacto) mas Berry Gordy odiou a música e se recusou a lança-la, provavelmente porque fugia completamente aos parâmetros criteriosos da gravadora, sempre preocupada em não "contrariar" os consumidores brancos. A frase que se tornaria histórica de Gordy (e motivo de piadas eternas) foi: "Essa é a pior coisa que eu ouvi na vida"! 

A seguir reproduzo, via Wikipedia, o que aconteceu depois: "Ansioso por um produto de Gaye, diante da negativa de Gordy, Harry Balk foi ao vice-presidente de vendas da gravadora, Barney Ales, que, convencido por Balk e sem o conhecimento do chefe, lançou a single em 17 de janeiro de 1971. Ales prensou 100 mil cópias do disco e as enviou para as rádios de todo o país. O sucesso foi instantâneo, fazendo com que o disco vendesse 200 mil cópias numa única semana. A canção veio a se tornar um grande sucesso em todo mundo, chegando ao nº1 das paradas em março por cinco semanas consecutivas na Billboard R&B, uma semana na parada pop da Cashbox e chegando ao nº2 da Billboard Hot 100, vendendo um total de dois milhões de cópias, tornando-se a single de vendas mais rápidas da história da Motown até aquela data. O sucesso, que veio junto com fartos elogios da crítica, forçou Berry Gordy a conceder a Marvin Gaye total controle sobre suas produções, o que resultou no álbum What's Going On, lançado em maio daquele ano e que hoje é considerado pela Rolling Stone o mais brilhante álbum de protesto jamais gravado".

A guerra é o inferno, quando isso vai acabar?

Quando as pessoas começarão a se reunir novamente?

Não consigo encontrar trabalho, não consigo encontrar emprego, meu amigo

O dinheiro está mais apertado do que nunca

Ei, cara, eu simplesmente não entendo

O que está acontecendo nesta terra

O disco foi gravado ao longo de quatro meses. Músicas com letras e arranjos brilhantes, realizadas pelos melhores músicos e produtores, amarradas por um desenvolvimento conceitual, musicalmente e tematicamente falando. Ao mesmo tempo profundamente espiritual e de protesto quanto ao que estava acontecendo. Um "Soul Progressivo" que não soava como nada que havia sido feito anteriormente e que influenciou e influencia até hoje, tudo que veio depois.

Da ecologia em "Mercy Mercy Me (The Ecology)" - tema à frente de seu tempo - até a situação sofrida das crianças vietnamitas (relatadas a ele por seu irmão que havia voltado recentemente da guerra do Vietnam) em "Save The Children", passando por sua formação religiosa como em "God is Love", o álbum tornou-se um clássico inquestionável. Ao ouvi-lo, mesmo sem entender todas as letras, captamos todo um clima mágico conduzido pela voz celestial de Marvin e pelos arranjos impecáveis.

Depois deste disco Gaye gravaria outros excelentes e também clássicos álbuns, como "Trouble Man", "Let's Get It On", "Diana e Marvin" (com Diana Ross, que contém o megahit "Stop, Look, Listen") e "Midnight Love" (com o sucesso "Sexual Healing") entre outros. 

Marvin Gaye morreu em 1984, aos 45 anos, assassinado com um tiro pelo seu problemático pai Marvin Pentz Gay, o tal pastor petencostal. What's Going On?

Ao final da audição em frente ao mar achei que deveria escrever algo a respeito. Sobretudo porque, 50 anos depois, temos aqui uma obra extremamente atual. 

E eu continuo perguntando: Marvin, o que está acontecendo?

Comentários

  1. Que incrível a história deste disco e da música. Dele eu só conhecia Sexual Healing. Nem sabia que ele tinha uma carreira tão grande.

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    1. Realmente "Sexual Healing" é a musica mais conhecida dele, pois foi realizada já na época da MTV, anos 80, no disco "Midnight Love" que foi também o seu último álbum.

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  2. Olá Marcão! Como e bom ler seus textos, sobretudo quando é coisa de música. O Marvin merece todas as homenagens! Esse disco parece ter sido feito em 2020!! Um grande abraço pra ti. Parabens pelos seus escritos que nos agradam tanto.

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    1. Obrigado meu amigo. Vamos em frente na música e na pandemia. Sempre existirá um "What's Going On" para nos redimir.

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  3. Olá Marquinhos, belo texto e com uma reflexão mais que oportuna!

    Se me permite, vou contar uma pequena história ocorrida em paralelo a um episódio que mencionou...

    Aconteceu no dia 1o de Abril de 1984, que foi um domingo. Naquela época eu atuava nos fins de semana como discotecário na Discoteca Starship, no Tênis Clube de Macaé, e iria para lá trabalhar. Por volta das 19h me preparei e separei alguns LPs e Singles 12" para tocar, incluindo o álbum "Midnight Love" do Marvin Gaye. Logo depois alguns amigos que iriam comigo chegaram até minha casa e já íamos saindo quando vimos pela tv, no Fantástico, a notícia sobre a morte do cantor e as circunstâncias em que tudo aconteceu. Saímos em silêncio, perplexos, e andamos até o clube sem dizer uma única palavra. Quando chegamos lá um dos meus amigos, o Carlos, disse: "Cara, por que?". Não houve resposta!

    Naquela noite prestamos uma modesta homenagem a MG, pedindo 1 minuto de silêncio e depois reproduzindo algumas músicas de seu amplo repertório.

    Até hoje a pergunta do Carlos me incomoda. Talvez porque uma possível resposta seja "Porque falta amor nesse mundo!", situação que, infelizmente, ainda é estimulada por uma grande parcela da sociedade. Mas quem sabe um dia...

    Grande abraço!

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    1. Amigo Alfredo, em seu comentário você praticamente escreveu uma outra crônica. Obrigado por dividir conosco essa emocionante história, que encontra tantos reflexos nós momentos atuais. Valeu! Grande abraço!

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