O Dia das Crianças, Edgar Allan Poe e os Cães
Deitei na rede da varanda, escolhi uma playlist bem climática e antes de começar reler o conto gótico "A Queda da Casa de Usher" do Edgar Allan Poe - apropriado para uma segunda-feira cinzenta - resolvi dar uma rápida olhada nas redes sociais.
O Facebook me lembrou de um post antigo em que tinha inserido duas fotos de minha infância. Dia das Crianças. Lembrei dos meus filhos, claro. Para os pais, serão eternamente "nossas crianças".
Ouvi cães latindo na vizinhança e as recordações me levaram para mais distante...
Aos 8 anos já ia sozinho para a escola primária, distante uns 3 km de casa, naquele subúrbio distante do Rio.
Saía da rua 9 e ia pela rua 7 que naquela época, anos 60, já era asfaltada. Apesar da identificação com números, nenhuma semelhança com Nova York, posso garantir. Naquele dia o tempo estava nublado como hoje e eu portava um guarda-chuva que minha mãe recomendava levar sempre que havia um mínimo sinal de mal tempo.
Era uma caminhada razoável e eu ia meio que me escorando nos muros e cercas das casas. Já haviam se passado dez minutos quando o susto veio: um cão com uns dois metros de envergadura latiu forte e feroz no momento em que eu passava rente aos seus domínios. Senti o bafo do bicho no rosto, com uma surdez momentânea. O coração veio na boca e, não fosse eu uma criança que vivia correndo, com bom preparo cardiovascular, provavelmente o bairro registraria um caso de infarto infantil fulminante.
Segui caminhando meio tonto. Já sentiram raiva quando sua adrenalina sobe por conta da ação de um terceiro? O ódio do latido ainda estava ressoando quando me deparei com outro exemplar da família canina. Este estava sentado em cima de uma coluna de muro alto, pois a casa situava-se em um nível acima da rua. Resolvi descontar a raiva nele e me abaixei como se fosse pegar uma pedra para atirar. Era só um susto que queria dar. Acontece que ele não gostou nada e pulou da altura de três metros direto em cima de mim. Comecei a gritar e, vendo que não adiantava correr, utilizei do guarda-chuva para me defender do ataque. Funcionou e o animal seguiu de volta para seu trono.
Quando me recuperei deste quase segundo infarto algo começou a tomar conta de minha mente infanto-juvenil. Como fiel telespectador da série "Missão Impossível", exibida no Brasil na segunda metade dos anos 60 pela extinta TV Excelsior, não foi difícil bolar um plano de vingança contra aqueles dois e todos os demais caninos que ficavam à espreita, assustando os transeuntes desavisados.Consistia em comprar uma espingarda de grosso calibre, sair em uma madrugada chuvosa fria (para correr menos risco de ser pego) e mirar na cabeça de todos os cães de guarda que fosse encontrando pelo caminho. Eliminaria um grande problema da humanidade. Conseguem imaginar algo mais Edgar Allan Poe? Eu só tinha gatos em casa...
Este projeto primoroso só tinha um problema: eu precisaria esperar pelo menos uns dez anos, até ter maioridade e dinheiro para colocá-lo em ação. Tudo bem, o tempo passaria rápido. E passou mesmo. No entanto, sendo extremamente pacífico, nem Missão Impossível nem os ataques caninos da infância foram capazes de me afastar do amor aos bichos e da visão anti-armamentista.
E eu nunca mais lembrei dessa história, antes deste Dia das Crianças, tantas décadas depois.
Olho para o céu, o vento afastou as nuvens. Um sol de primavera começou a brilhar forte. Não dá mais para ler "A Queda da Casa de Usher" com este clima tropical. Vou ter de esperar anoitecer.
De repente um vizinho, que havia levado seu grande cachorro para passear, retorna e atravessa em frente à minha varanda na pequena vila. O cão olha pra mim e late forte repentinamente. Eu levo um susto e...
Hahaha,desculpe mas imagino a sua luta com o cão e o guarda-chuva.
ResponderExcluirDizem que os cães percebem quando as pessoas os teme.
Suas narrativas são sempre muito boas e nos faz viajar.
Obrigado Lu.
ExcluirAcho que foi esse o caso. Quando menor (acho que com os seis anos) já havia sido atacado em uma chácara. Aí passei a temer os cães. Eles devem perceber mesmo.
Parabéns por suas crônicas. Sempre me coloco nas histórias, que você sabe narrar de forma que o leitor se sente vivenciando. E conta histórias que são comuns a muitos. Faça um livro!
ResponderExcluirObrigado Marcondes! Muito importante para mim esse retorno dos leitores. Um grande incentivo, quem sabe, para o livro sugerido. Abraço.
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