O Closet Na Quarentena
Difícil falar de temas leves e descompromissados - que sempre foi o objetivo destas "Impressões" - em um momento tão difícil. Mas vamos tentando manter o foco nessa linha, até mesmo para aliviar as tensões de nossos espíritos.
Esta semana o Facebook me lembrou que completei, no último dia 15, quatro anos de aposentadoria. Aliás acho que o Face está vigiando minha vida mais do que eu gostaria. Ok, culpa minha. Mas apoio totalmente o boicote bilionário que empresas estão fazendo em cima da rede, por conta da pressão dos seus consumidores. Mark Zuckerberg só começou a tomar jeito quando sua consentida omissão em relação à onda de ódio lhe doeu no bolso.
Bem, outra coisa que me lembrou dessa evolução temporal - me aposentei em 2016 - foi o closet. Explico: devido a uma ideia arquitetônica de 30 anos atrás, esse espaço é ponto de passagem obrigatória para o banheiro do quarto, mesmo com adaptações sofridas à pouco tempo.
E o que tem isso a ver com estar aposentado? Como todo trabalhador de 7 às 17 h, cinco dias por semana, o consumo de peças do vestuário é alta. Não dá pra lavar roupa todo dia. Somando às usadas em casa e as destinadas ao convívio social o resultado é um volume considerável de peças. O problema é que me aposentei meio que repentinamente, aproveitando uma breve janela de oportunidade. Não deu tempo para me programar, mesmo em coisas aparentemente sem muita importância, como o fato de ir diminuindo a aquisição de vestuário.
A saída inicial foi promover uma primeira rodada de doações de roupas. No entanto, como pretendia (ainda pretendo, juro) voltar a estudar e/ou trabalhar em meio período, reservei muitas peças para esses planos. Que foram engavetados temporariamente por razões obvias, como aconteceu com todo mundo.
E aqui vai um outro depoimento de suma importância, acreditem. De certa feita encontrei na fila da padaria um antigo conhecido que não via há bom tempo. Encontrei mas não reconheci. Ele é que veio falar comigo. Fiquei me perguntando porque não o reconheci de primeira. É claro que a passagem do tempo pesa mas não tanto assim. "Rapaz, me aposentei há 1 ano e não quero outra vida. Nem pra roupas eu olho. Pego qualquer coisa velha e coloco", me disse ele. Estava aí a resposta. Cabelo desgrenhado, olhos sonolentos, camiseta de malha dez números acima, short com aquele cordão de amarrar aparecendo pendurado. Tive que rir, eu só o conhecia alinhado. Que bom que ele estava à vontade assim. Isso é que importa. Mas naquele momento eu decidi que quando me aposentasse não adotaria essa "estratégia", pelo contrário. E assim tenho feito, tanto em casa como nas saídas diárias. É apenas um processo complementar de manter a auto-estima, devido ao longo período de 35 anos submetido a esse regime social e trabalhista.
E aí é que retornamos ao closet. E a pandemia. Sendo do grupo chamado "de risco", tenho ficado direto em casa. Passo pelas roupas e vejo sua existência sem muito sentido neste período, mesmo usando boa parte delas para tarefas prementes em frente ao notebook ou até mesmo para a poltrona de leitura e audição de Jazz. É o que temos para o momento. E neste momento ouço Herbie Hancock.
Diante dessa restrição de movimentos - sem tornozeleira é bom frisar - qualquer saída torna-se um evento, como a necessidade de ir ao supermercado.
Perto de casa foi inaugurado um que, pela propaganda exagerada, tinha uma área reservada para 500 rótulos de vinho. Boa oportunidade para sair catando ofertas.
Esta foi uma semana fria e chuvosa o que me abriu outra oportunidade relacionada ao já mal afamado closet: usar peças que não utilizava a uns 150 anos. Se era um "evento" fazer compras, lá fui eu com um belo casaco de couro, ao estilo James Dean. Velha roupa não tão colorida, parafraseando Belchior.
Realmente o acervo era grande e eu fiquei um bom tempo olhando as prateleiras. Ao que me veio um jovem, empregado do lugar, responsável pelo área destinada às bebidas. "Deseja algo especial senhor?". Obrigado. Só estou pesquisando... Passaram alguns minutos e lá vem ele com uma garrafa de um vinho francês. "Senhor, vi que tem bom gosto e lhe trouxe essa boa opção". Como ele viu que eu tinha bom gosto? Bem, realmente se aprecio vinhos é um bom sinal. Mas poderia ser pelo casaco de couro, que dá um ar de elegância europeia (lembre-se que ele me veio com um vinho francês). "É da região da Borgonha, um legítimo Pinot Noir daquela área".
Peguei a garrafa com olhar de curiosidade. No fundo não tinha a etiqueta do preço. Quanto custa, perguntei. "Senhor, está em oferta a R$ 269,90!". Porque insistem nos noventa centavos em um valor desses eu nunca consegui entender. Se fosse naquelas antigas lojas de R$ 1,99... Agradeci. Mas retruquei que apesar de ter "bom gosto" não tinha dinheiro para pagar duzentos e sessenta e nove e noventa em uma garrafa de vinho. E complementei: Você não tem algo bom que custe dez vezes menos? Ele sorriu por trás da máscara e voltou com um chileno (vinho, não um cidadão) Cabernet Sauvignon que custava exatos "dez vezes menos": R$ 26,90. "Leva esse, não vai se arrepender". Bem, se eu me arrepender não vai me custar tão caro. Desta vez ele e uma cliente, que também estava por perto ouvindo, se afastaram mais (por causa dos dois metros recomendados) e deram uma boa risada.

Depois das aventuras por entre as estantes vinícolas, carimbamos o passaporte no caixa, não sem antes pegar itens de primeira necessidade como 1 kg de banana prata e meio de queijo do tipo Gouda. Mentira. Foi mussarela mesmo. O Gouda estava a R$ 98,90!
O casaco voltou para seu lugar, provavelmente para uma hibernação de mais 150 anos. Pelo menos naquela tarde fria o closet não me pareceu tão sem sentido.
Enquanto isso, sigamos na quarentena, se possível.
Post Scriptum:
Uma boa notícia neste sábado. Li agora que Biden abre vantagem de 11 pontos sobre o Trump. Tudo indica que os históricos protestos antirracistas somados à péssima atuação do presidente americano em relação à Covid estão acordando os eleitores americanos. Uma derrota de Trump é extremamente importante para barrar a onda fascista que emergiu do armário (ou do closet, mas não o daqui de casa, óbvio) nos últimos tempos em boa parte dos países, Brasil incluído. E estamos pagando um preço muito alto por isso.
Fazia tempo que eu não ria assim. Muito bom!
ResponderExcluirQue bom que gostou! :)
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