O Pseudo Colecionador

"A abstração expressiva de suas obras encontra seu método iconográfico através da transposição de matriz panofskyana, privilegiando em forma de cores e traços o sujeito-cognoscente fenomenológico em detrimento da organicidade concentrada por entre as molduras dos quadros". Entenderam? Já volto a este parágrafo.

No início dos anos 80 do século passado, por volta dos vinte e poucos anos, eu havia conseguido finalmente uma certa independência financeira. Trabalhando em ciências exatas, mesmo tendo um perfil totalmente inexato. Foi ótimo poder pagar o táxi e o ingresso de cinema para ver filmes adultos que a maldita ditadura - já nos seus estertores - finalmente havia liberado. É claro que estou mentindo. Só via filmes de arte: Bergman, Fellini, Godard, Kubrick, etc. Ok. Era em sessão dupla. O "filme adulto" vinha de brinde antes e eu era obrigado a assistir. E a fila lá em Aracajú - onde eu estava, por volta de 1982 - sempre era grande. O pessoal gostava de "artes". Faz de conta. Se bem que diziam então que algumas dessas produções, tipo "Behind The Green Door" e "The Devil In Miss Jones", eram de arte. Não sei não, tenho minhas dúvidas. Embora juntar em uma mesma sessão Kubrick com Gerard Damiano não soasse tão estranho assim, considerando que "Laranja Mecânica" provocou um certo escândalo em sua época. E o libidinoso "Último Tango em Paris" de Bertolucci já havia sido proibido por aqui também nos anos 70.

O fato de me dedicar à exatidão no trabalho oficial, sendo uma pessoa mais das artes, me fez sempre buscar estar pelo menos no perímetro das diversas atividades ligadas à criatividade não voltada à produção em massa. A primeira dessa exteriorização veio de uma forma ligada à minha nova capacidade financeira. Não era muita coisa em termos de escala econômica, mas o salário para mim era uma fortuna, considerando que antes eu não tinha dinheiro nem para pagar um Hambúrguer do tipo simples (pão, carne, alface e tomate; sem queijo, que era mais caro e tinha um nome mais pomposo: Cheeseburguer!). Então achei que poderia me tornar um colecionador de obras de arte, quadros. Uma vez que pintá-los estava longe de minha capacidade manual e provavelmente intelectual. Se bem que criar obras de arte tem mais a ver com as emoções.

Pois bem, lá pelos meados daquela distante década, descobri uma revista especializada em análise de obras de artistas brasileiros contemporâneos e no mercado ligado a eles. Unir a possibilidade de ser um investidor com o amor às pinturas me fez ser um assinante e leitor voraz da publicação. Precisava me informar. Mas surgiram alguns revezes.

O primeiro problema: eram abordadas principalmente obras abstratas. Eu sempre gostei dessas realizações de vanguarda mas minha maior paixão eram os Impressionistas. Tudo bem. Ao que parecia o mercado estava dirigido para essa escola mais atual. Então vamos lá entender essas pinturas, lendo as resenhas dos críticos especializados. Aí vem o segundo problema: já tentou explicar uma pintura abstrata? Eu não. Mas quem escrevia na revista conseguia. Quer dizer, eu acho. A questão é que os textos me pareciam mais abstratos dos que as obras analisadas. Eu não conseguia entender nada. Volte agora ao primeiro parágrafo para (não) compreender a que me refiro.

Mesmo assim eu gostava de não entender e ficava lendo, admirando a capacidade dos caras de criar algo do (quase) nada. Será que o pintor entendia a análise do seu quadro abstrato? E será que o crítico entendia o que estava escrevendo? Um grande mistério para mim. Parecia a série alemã "Dark" ou alguma das músicas do primeiro disco do Zé Ramalho, tipo "Dança das Borboletas". Se sabe o que é... Não entender faz parte do processo: já que é praticamente impossível explicar o abstracionismo cria-se uma crítica "abstrata". Mas os textos eram legais, seja lá o que significassem.

Depois dessa tentativa autodidata de especialização, parti para a única galeria de arte que existia na cidade (não a citada Aracajú, no Sergipe, mas Campos, situada na chamada Planície Goitacá, no Norte Fluminense). Localizada em um antigo casarão - que, como a maioria das belas construções históricas, já foi devidamente demolida pelo crescimento vertical da cidade - a Galeria Picasso era de propriedade de um médico. Acho que era mais um que, como eu, exercia uma profissão mas era ligado em outros interesses. Não sei se no caso dele era comércio ou artes. Provavelmente as duas coisas.

Com os parcos recursos que tinha para um pretendente a investidor só dava para adquirir obras mais baratas, assim mesmo aos poucos. De certa forma até gostei disso porque as obras abstratas em que tinha me "especializado" lendo a revista eram mais caras devido ao modismo. Assim me voltei para os impressionistas cujas obras me lembravam a infância.

O desfecho foi que descobri que havia muita estratégia de valorização forçada de determinados pintores e que esse mercado não era para amadores. Concluí também que definitivamente não tinha dinheiro suficiente para me aventurar naquela ideia a princípio tão atrativa. 

O fato é que no final dos anos 80 eu já estava noivo e cada vez que chegava com um quadro novo levava uma bronca de minha futura esposa: "Você tem de parar de comprar isso, precisa de uma casa!". Total razão. Eu tinha quadros mas não tinha as paredes! Precisava começar a construir a casa para ter um teto para a futura família. E ficavam os quadros armazenados em uma pequena dispensa. Coisa de colecionador compulsivo, que tinha começado na distante meninice com figurinhas e gibis e hoje continua com discos e livros.

Sobre o texto entre aspas do primeiro parágrafo, estão querendo entender o que significa? Seria trecho analítico de uma típica resenha de arte abstrata. Bem, eu procurei antigas edições da revista citada, para copiar. Tenho mas não achei. O jeito foi montar um texto ininteligível - ao estilo da publicação - com ajuda do Google. Eu acho que não significa nada, quem poderá dizer? Mas eu gostei de ter feito. Pelo menos uma coisa dá para explicar: "panofskyana" vem do crítico e historiador de arte alemão Erwin Panofsky. Me lembrei disso! Pelo menos ficou alguma coisa daqueles estudos...

Deste impreciso período de pseudo colecionador/investidor em artes pictóricas restaram meia dúzia de quadros que até agora - mais de 30 anos depois  - continuam me dando prazer em vê-los pendurados, enfeitando meu lar. Talvez alguns deles tenham se valorizado ou venham a tornar-se um tesouro daqui há muito tempo. Acho difícil. Mas não importa. Eu os tenho hoje como um pedaço da história de vida. 

Comentários

  1. Boa tarde Marcos.
    Conheço seu trabalho no jornal Metamúsica, de Rock Progressivo. Descobri seu blog acidentalmente. Não sabia que continuava escrevendo. Li as outras crônica e gostei muito. Não poderia ser diferente. Também adoro artes essa sua história é genial. Que tal voltar com o Metamúsica? Obrigado. Parabéns!

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    1. Olá Miguel. Obrigado pela participação. O blog existe há um tempo e antes eu escrevia em um outro (link ao lado) que está parado.
      O Metamúsica volta um dia. Os planos existem. Vamos aguardar o melhor momento. Abraço.

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  2. Olá! Que forma de contar histórias de vida. Gostei muito.
    Essas imagens são os quadros que você conta que adquiriu? Eu amo o estilo impressionista. Esses são lindos.

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  3. Kkkkkk...
    Vc deveria era ter investido em dólar ou ações. Kkkk

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  4. Faça como eu, pinte seus próprios quadros. Valor: nenhum! Despesas: várias! Prazer: não tem preço!😁😉
    Texto impecável: dou valor! 😚

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    1. Gostei da idéia. Mas talvez seja mais fácil encomendar alguns a você e eu continuar como minhas escritas... rsrs...
      Obrigado! Bjs.

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  5. Arte não se explica,se sente.Um dia ousei dizer que não gostava de Picasso,pura ignorância?Na verdade o que não me agradava eram os temas,as formas distorcidas,sofridas ,diferentes do que apreciava ver nas pinturas, esculturas e obras de arte no geral.Com o tempo e uma compreensão mais ampla de arte,visita a museus e através da leitura da História da Arte , concluí que cada período gera um movimento artístico e reflete amores,dores e cores .Penso que cada um se identifica com o que mais lhe agrada,com o que realmente te comove.Essa é minha forma particular de ver e sentir a arte.Me sinto livre para gostar ou desgostar sem me preocupar com críticos ou especialistas.
    Parabéns pelo tema e pela forma leve de escrever

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    1. Olá. Obrigado por seu comentário e pelas reflexões a partir de sua vivência com a arte. Enriqueceu e complementou o texto.
      Abraço.

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