Um Estranho Encontro no Festival

Costumo dizer que Jazz é uma música noturna. Bom pra ouvir depois que a luz do dia se vai e a noite avança, com uma taça de vinho por perto. A obra "Round Midnight" talvez tenha me influenciado nesta percepção.
A exceção é se o dia livre for frio e chuvoso. Neste caso o espírito noturno parece se apresentar e o clima pede um bom livro, ao som de "Kind of Blue" de Miles Davis, "Time Out" do Dave Brubeck Quartet ou "Ballads" de Jonh Coltrane. Já o vinho depende do horário. Melhor que seja mais tarde mesmo.
O feriado prolongado tem sido assim e tenho aproveitado para colocar as audições em dia, sobretudo em relação aos meus discos da gravadora alemã ECM Records, que há décadas vem editando uma espécie de Jazz minimalista, mais lento e leve, diria mais espiritualizado, embora esta seja uma percepção bem subjetiva.
Mas só parei agora em frente ao Notebook para tentar contar uma coisa que me ocorreu hoje.

Está acontecendo um festival de Jazz e Blues na cidade. Escolheram um lugar inusitado mas que tem tudo a ver. Uma antiga usina de açúcar que deixou de funcionar há décadas. A construção é imensa, com altíssimo pé direito, janelões envidraçados, paredes de antigos tijolos aparentes, iluminação amarelada. Já estive ali algumas vezes e a atmosfera do lugar é ao mesmo tempo empolgante e um tanto quanto sobrenatural.
Cercada de grande área verde, à medida que a tarde cai e a noite toma o seu lugar, a ambientação vai mudando e tudo parece tornar-se meio transcendental.

Já era noite quando parei o carro no estacionamento improvisado. A chuva havia dado uma pequena trégua mas o solo encharcado era um desafio para desviar da lama, das poças e do barro.
Embora cheio de carros, estava quase deserto pois as pessoas estavam dentro da usina.
Caminhamos pelo ambiente mal iluminado eu, minha esposa e outro casal. Antes de entrar no prédio havia um pequeno grupo conversando. Notei que um deles tinha um trompete na mão. Deve ser alguma banda aguardando o momento de tocar, pensei.
A medida que nos aproximávamos eu fui diminuindo o passo. É que adoro conversar com músicos e queria saber se aqueles eram mesmo. Com isso o pessoal conversando nem percebeu que fiquei para trás e foram entrando no local.

Lentamente, ao passar por eles, pude ouvir uma frase que me fez parar. Alguém de cabelos brancos desgrenhados disse que a música era o vínculo que une a vida do espírito à vida dos sentidos, que a melodia é a vida sensível da poesia. Ao que outro respondeu que era verdade pois música exprime a mais alta filosofia numa linguagem que a razão não compreende.
Epa! Esses músicos são mesmo de alto nível ao analisar o que fazem. Parei à pequena distância e olhei direto para aquela roda de amigos. A luminosidade era fraca no local e eu quase que só enxergava vultos, mas o som da conversa era bem nítido, mesmo vindo lá de dentro a música de um sax, acompanhado de piano, baixo e bateria.
Precisava ouvir um pouco mais daquele bate papo, onde aquelas pessoas estavam dando sua opinião acerca do que era a música, seu sentido. Dá pra fazer uma boa crônica desses conceitos, pensei.

Apesar de estar bem perto parece que não perceberam ou não deram importância à minha presença, tão envolvidos estavam em dar sua opinião sobre o tema tão importante para eles.
Um senhor com ar de extrema sabedoria deu uma espécie de veredito: a música é celeste, de natureza divina e de tal beleza que encanta a alma e a eleva acima da sua condição. Concordo, disse um outro de bigode esparramado, afinal a música oferece às paixões o meio de obter prazer delas.
O nível bem alto para aos meus padrões intelectuais me fascinava e eu queria entrar na conversa mas só conseguia ficar quieto ouvindo.
E continuaram.

Meus amigos, é certo que a música é a linguagem do espíritos.
A vida é como a música. Deve ser composta de ouvido, com sensibilidade e intuição, nunca por normas rígidas.
O que parecia ser o mais jovem deles, com um certo ar de rebeldia comentou sobre o fato da música ser sinônimo de liberdade, tocar o que quiser e como quiser, quando é bom e tem paixão, pois a música é o alimento do amor.
O que carregava o trompete mal falava. Ficava com a cabeça levemente abaixada mas com os olhos voltados para quem estava com a palavra no momento. Olhar sério e compenetrado seu rosto era iluminado pelo brilho que emanava do instrumento dourado.
A única vez que comentou foi se dirigindo ao único outro que também portava instrumento, um belíssimo sax prateado: "John, você que deve falar sobre isso, afinal criou uma música que era um presente para Deus. Acho que naquela época você queria entender os mistérios da vida e da morte..."
O negro alto de voz firme e olhar penetrante replicou pensativamente, era um presente e um agradecimento pois experimentei, na música e pela graça de Deus, um despertar espiritual que me levaria a uma vida mais rica, plena e produtiva. Um Amor Supremo.

Depois dessa frase liguei os pontos e comecei a ficar tonto. Minha respiração tornou-se mais intensa e o coração acelerou. Me senti meio que flutuando, parecendo estar sob um efeito hipnótico. E eu não tinha bebido nada. Senti o toque da mão de minha esposa e um sobressalto, como se estivesse acordando repentinamente: "O que houve, porque não entrou e ficou parado aqui?" Respondi, ainda me recuperando, que parei para ouvir uma interessante conversa daqueles senhores ali. "Quem? Não vejo ninguém!" Virei a cabeça para o lugar onde eles estavam segundos antes. Nada. Apenas alguns arbustos envoltos em penumbra fracamente iluminada por uma réstia de luz que vinha do janelão onde se realizava o festival.

As gotas da chuva recomeçaram e eu entrei sentindo um olhar de incredulidade dela. Me dirigi ao bar, pedi uma caneca de Chopp e cheguei para perto do palco. Os músicos tocavam uma música que parecia ser inspirada na obra prima "A Love Supreme" de John Coltrane... Senti os olhos úmidos e um certo arrepio por todo o corpo. Virei o chopp todo de uma vez só.

As frases ouvidas naquela conversa não me saíam da cabeça e quando cheguei em casa fui direto ao Google tentar descobrir se estavam catalogadas. Surpresa (ou, nem tanto) eram conhecidas declarações de gente importante como Beethoven, Nietzsche, Schopenhauer, Aristóteles, Khalil Gibran, Samuel Butler, Kurt Cobain, Coltrane, etc. acerca da música.

Bem, ou este foi o meu primeiro contato com o mundo dos espíritos - e que espíritos (sobre aquele tema, naquele ambiente propício) ou tive um momento fora da realidade.
Ou esta é apenas uma crônica ficcional?
Jamais saberemos. :)

Este vídeo contém o poema "Psalm", parte 4 do disco "A Love Supreme", obra prima realizada por Jonh Coltrane em 1964. Notem que literalmente ele toca as letras de sua oração. Mas como é possível "tocar literalmente" com o sax um poema, uma oração? Assistam, tentem acompanhar. Emocionante!

Comentários

  1. Marcos que texto sensivel e magnífico. Creio que o ambiente e a energia propicia do lugar, mas a sua sensibilidade deram lugar e uma linda viagem.

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    1. Deve ter sido exatamente isso. Boa música, lugar especial, emoções. Obrigado pelas palavras. Abraço!

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  2. Que coisa maravilhosa este texto. Chorei! Obrigada!

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    1. Obrigado pelo depoimento Mia. Boas emoções são sempre bem vindas.
      Abraço!

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