O domingo e a bomba d´água

Primeiro domingo de agosto.
O vento frio consegue se esgueirar por entre finas frestas na janela que eu nem sabia que existiam.
Faz um barulho de filme de suspense, reforçado pelas gotas da chuva que batem no vidro.
Dia excelente para permanecer debaixo do cobertor por mais tempo, já pensando nas comidas e bebidas que o dia pede: café expresso na manhã, massas & vinho no almoço e uma sobremesa bem calórica logo a seguir. 
A música que combina com essa temperatura é Jazz ou Fusion bem suave. Me lembrei do disco "La Notte", que não escuto há tempos: uma emocionante criação do pianista norueguês Ketil Bjornstad baseado no filme homônimo do italiano Michelangelo Antonioni, de 1961, estrelado por Jeanne Moreau e Marcello Mastroianni. 
Claro que filmes e livros cabem neste domingo e terão seu momento, provavelmente ao cair da tarde, pois confesso não estar muito animado para a missa dominical das 18 horas. Mas farei minhas orações, em que pese ser eventualmente apontado como um "comunista ateu" (o que não seria demérito, convenhamos) por detratores não muito bem informados sobre minhas preocupações de cunho social, ainda mais nessas épocas tão difíceis e estranhas.
Enfim, que domingo maravilhoso para pouco fazer e muito a aproveitar!
Me levanto, vou ao banheiro da suíte e abro a torneira para sentir a temperatura da água. Congelada? Não. Está frio mas não a esse ponto. Ligo o chuveiro. Nada. O que está havendo, não tem água?
Nem uma gota pela casa toda!
Coloco um sobretudo quente desço a escada e encaro a friagem e a chuva. Vou até os fundos, me abaixo, puxo a pesada tampa de ardósia que cobre a cisterna: estão ali dois mil litros de água intactos. Porque então as duas caixas d´água lá de cima estão vazias? Problema na bomba, na boia eletrônica?
Pego o celular e ligo para um amigo para conseguir uma opinião uma vez que meus conhecimentos e meu prazer em mexer com fios e eletricidade se aproximam do zero.
Vou aí agora, ele me diz. Não precisa, respondo. Ele insiste e vem. Acho que sou gente boa (não necessariamente "gente de bem", conforme alguns conceitos atuais) pois tirar um amigo do seu aconchego neste domingo frio por insistência dele demonstra que ando com a consideração elevada. Mas tenho reais dúvidas se mereço tal apreço, registre-se.
Traz uma sortida caixa de ferramentas que eu nunca me animei muito em adquirir. Faz testes e mais testes com a bomba hidráulica e dá o veredito: Marquinho, o problema é lá em cima, tem de ir lá ver!
Como diriam nas redes sociais, eita!
As caixas ficam a bons metros acima do nível do mar e pra chegar lá uso uma escada tipo marinheiro que não segue normas da ABNT pois não tem guarda-corpos. Há trinta anos não se pensava nisso.
O amigo se dispõe a ir mas eu não o colocaria em risco: um pouco acima do peso com as telhas molhadas e mais aquela escada não é recomendável pra ninguém. 
Criança criada subindo em árvores é com destreza e sem medo que me aventuro por ali, mesmo debaixo de chuva. O problema é que eventualmente esqueço que já completei seis décadas de existência.
E lá de cima é que vou ouvindo as instruções que o amigo me passa para tentar resolver o problema.
Enquanto procuro, mexo aqui e ali, olho para o céu. As nuvens baixas e escuras vão passando, movimentadas por uma brisa gelada que me resfria e molha o rosto. Penso no cobertor, no café expresso, nas massas acompanhadas de vinho, na sobremesa calórica, nos filmes, discos e livros. Em "La Notte". Planos de minutos atrás que foram modificados por uns litros de água que não estavam onde deveriam estar.
E assim é a vida, tudo pode estar por um fio, sempre. Neste caso, literalmente: o fio que ligava a boia à bomba havia se partido, descobri na minha relutante incapacidade de eletricista. Seguindo o passo a passo ditado pelo amigo vários metros abaixo consegui resolver o problema e a água voltou a cair abundantemente no reservatório.
Com cuidado faço o caminho de volta, pisando nas telhas frágeis e escorregadias, descendo a escada de segurança relutante.
Agradeci ao amigo que convidei para almoçar mas ele tinha outro compromisso. Bom ter amigos com quem podemos contar a qualquer momento.
A manhã dominical tinha ido embora mas o problema resolvido. E devem ter ficado alguns aprendizados. Técnicos e sobre a vida.
Com frio e  molhado poderia agora tomar um banho quente e retomar os planos iniciais, desde que não apareça algo novo a ser resolvido. 
Depois dessa, possivelmente minha rinite de estimação, que acabei de curar, deve voltar. Mas não é hora de pensar nisso. Fecho o notebook onde conto rapidamente essa história e volto ao vinho e à música, pelo menos por enquanto.

Comentários

  1. Olá Marcos.
    Fazia tempo que não entrava em seu blog e adorei ler diversas crônicas. Estava com saudades dessa sua capacidade de transformar acontecimentos comuns em textos deliciosos de ler. Parabéns! Espero que escreve cada vez mais! Obrigada, beijos pra você.

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    Respostas
    1. Obrigado Alice! Bom te ver por aqui. Agradeço o incentivo. Bjs.

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  2. Oi Marcos, amei a crônica e fiquei na dúvida se é ficticia ou real. Tenha um bom domingo.

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  3. Que bacana! Que leve! Muito divertido, leitura fácil de fáceis risos. Observando o senhorio subir as escadas que não seguem as normas da ABNT, questiono meu senso de aventura hahaha. Vou escutar Ketil Bjornstad primeiro no entanto. Abraços Marcão!!

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    Respostas
    1. É efetivamente uma aventura não muito recomendável subir aquela escada com o tempo chuvoso. Rsrs... Obrigado pelas palavras e recomendo o Ketil Bjornstad para momentos de relaxamento: é um pianista de Jazz moderno, minimalista, que constrói suaves harmonias.
      Abraço!

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