O ABBA e os Bullyings


Início de uma noite fria de sexta-feira.
Uma garoa fina cai lentamente.
Me preparo para começar a assistir "Anthology", série que estou revendo e que conta, em aproximadamente 32 horas de gravações, a trajetória do maior grupo musical da história, The Beatles.

Um cálice de vinho rosé do lado faz a temperatura ficar aconchegante.

Antes dou uma olhada na Netflix e me aparece como o opção o filme "Mamma Mia!" de 2008, adaptação para o cinema da peça musical homônima, com elenco estelar capitaneado por nada menos que Meryl Streep. Excelente opção do tipo "vale a pena ver de novo", sobretudo por conta do recente lançamento de "Mamma Mia: Lá Vamos Nós de Novo" ("Here We Go Again", trecho da mesma música), que comemora dez anos do primeiro filme.

Sem que eu me desse conta já estava em frente ao notebook. Me lembrei de histórias relacionada ao ABBA, lá em fins da década de 70.
Já naqueles velhos e saudosos tempos, ainda bem jovem, era um pouco difícil explicar o ecletismo das minhas preferências musicais. Adorador de música, parecia que me prender a uma única corrente musical era isso mesmo: prender com corrente. Gostava de ouvir quase tudo, pelo menos para poder separar o joio do trigo. Tal fato parecia ser coisa de louco e, de fato, eu nunca duvidei que essa sentença sobre a minha pessoa estivesse errada. Se alguém me chamasse de maluco eu acatava respeitosamente.

Mas aconteceu de me rotularem com outros adjetivos em duas oportunidades exatamente por causa de música. Isso teve a ver com o fato de eu estar portando debaixo do braço, à vista de todos, LPs (discos de vinil para quem não conhece a sigla, que significa Long Play) do ABBA.
Como diz o Roberto na música "Negro Gato" - depois magnificamente gravado pelo genial Luis Melodia - "minha triste história vou lhes contar e depois de ouvi-la sei que vão chorar...". Quer dizer, acho que vão rir.

Embora afeito à extensas obras complexas, construídas de forma técnica irretocável, de Mozart a Tangerine Dream, passando por Miles Davis e Pink Floyd, chegando a Black Sabbath e Iron Maiden, o fato é que instintivamente eu percebia quando uma música de apelo popular tinha uma qualidade acima da média. Não que analisasse de forma pormenorizada. Eu apenas instintivamente gostava daquilo e sabia que era bom, independente do que os críticos especializados achavam.

O grupo sueco ABBA, então formado por dois casais (que depois se separariam musicalmente e matrimonialmente, não sei em que ordem ou se foi ao mesmo tempo) se encaixava como luva nisso. Música pop de fácil assimilação é legal mas tem expectativa de vida curta: é como a bela superfície de uma lagoa azul mas que só tem dois dedos de profundidade. Você não consegue se banhar ali. No máximo se molhar. Se sol e vento batem ela seca em dois tempos.

O ABBA fez ao longo de menos de dez anos de carreira uma grande coleção de músicas pop de fácil assimilação. Não deveria ser levado à sério por mim. Mas foi. Construíam canções tão fáceis, riffs tão previsíveis, letras tão simples e interpretações tão óbvias que eu me perguntava porque ninguém tinha feito aquilo antes. Lembrando que não eram da Inglaterra ou Estados Unidos, países que facilitariam seu sucesso mundial. Mas da fria Suécia conquistaram o mundo porque naquela aparente simplicidade se escondia um modo único de construir músicas. Nada era tão simples como parecia e eu achava que aquelas músicas não iriam desaparecer na poeria do tempo. Independente disso eu gostava e pronto. Mesmo que tivesse escutado antes Karlheinz Stockhausen.

Naqueles tempos não havia o "politicamente correto" e eventualmente amigos ou conhecidos se dirigiam a outro de forma não muito polida.
Vamos aos curiosos fatos.

Episódio 1
Discos do ABBA embaixo do braço. Encontro com Kerpen, um exigente audiófilo, colecionador de equipamentos de som caríssimos que vivia comprando discos importados para testar sua aparelhagem top de linha.
- Que diabos de discos do ABBA são esses? Vai jogar fora?
- "São meus. Gosto deles", retruquei.
-Tá de sacanagem! Você gosta de música boa e isso aí é brega!
- "Kerpen, eles são bons. Não é fácil criar tantas melodias e harmonias simplificadas mas que mantém uma essência bela que atrai a atenção", disse eu tentando me justificar.
- Que nada! Isso é brega! E você não é brega mas já tô achando que está se transformando em um. Que desastre.
- "Até Mozart criou melodias pegajosas..."
- Porra! Tu tá de sacanagem! Agora tá falando merda!
- "O que acha de Eine Kleine Nachtmusik?"
- Você tá louco! O ABBA vai ser esquecido em alguns meses! Parei com você!
E lá se foi ele em um misto de decepção e raiva por me ver defendendo o que chamava de "aberração musical". Levou meses até digerir que um dos caras que ele mais admirava gostava do ABBA.

Episódio 2
Discos do ABBA embaixo do braço. Encontro com Carlinhos Alberto outro que se chegou pra perto por saber da minha obsessão musical.
- O que levas aí amigo? O novo do Genesis? Já ouviu "A Song for All Seasons" do Renaissance? Saiu no Brasil!
- "Não. São do ABBA."
- A é? De quem?
- "Meus."
- Hã?
- "Meus."
Momento de inquietação por parte do Carlinhos. Olha pra mim de forma estranha.
- Mas isso é música de viado!
- "Como é?"
- Você não é bicha! Como pode gostar do ABBA? Ou é?
Dei uma gargalhada. Tinha alguns conhecidos gays que gostavam do Village People e resolvi zoar com o amigo.
- "Eu gosto também do Village People e de "I Will Survive" da Gloria Gaynor!"
Ele percebeu a sacanagem e não caiu. Deu uma risada também.
- Tudo bem. Mas esse ABBA é uma merda e vai desaparecer logo, só aguenta duas músicas depois some. Que perda de tempo!
E lá se foi fazendo trejeitos tentando me sacanear.

Há décadas que não os vejo. Erraram feio na previsão sobre o ABBA que ganhou status de cult nos últimos anos. Os rótulos pejorativos não conseguiram superar aquela simplicidade melódica que construiu temas inesquecíveis e que hoje são objeto de estudos musicais acadêmicos. 
Resisti bem aos bullyings e estava certo com meus instintos musicais. O ABBA é bom!





Comentários

  1. EU ADORO O ABBA!
    FINALMENTE ESSES FILMES FIZERAM JUSTIÇA À GRANDE OBRA DELES.
    E O SEU TEXTO, COMO SEMPRE EXCELENTE, TAMBÉM!
    BJS

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    Respostas
    1. Concordo com a importância dos filmes para a divulgação da obra Lúcia. Obrigado!

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  2. Também sou fã deste grupo,assistir o primeiro filme várias vezes, pretendo assistir logo o segundo. Bjs

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    Respostas
    1. Quem bom! Eu revi o primeiro. Ainda não vi o segundo mas também pretendo ver em breve. Obrigado! Bjs

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