O reencontro da turma


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Só depois vieram saber disso, mas todos receberam no mesmo dia e horário a mensagem pelo WhatsApp, com aquele aviso do aplicativo: "o remetente não faz parte de sua lista de contatos, deseja bloquea-lo?". Ninguém bloqueou pois a nota era clara: "Olá meu amigo(a), sou a Bia, da Enfermagem. Quanto tempo... Precisamos nos ver!"
Como esquecer de Bia, Beatriz, figura agregadora do curso superior de Enfermagem da UFRJ? A mais querida, aquela figura da turma que é unanimidade, que resolvia conflitos, organizava os eventos. Uma liderança natural, simpatia em pessoa, com um carisma que conquistava não só os colegas de classe como também o corpo docente e até os graus mais altos da Universidade.
Antes dela a turma de Enfermagem tinha pouca voz ativa no Campus, com ela tudo mudou. Mas não era daquele estilo UNE, de liderança política. Conseguia as coisas com seu olhar e suas palavras doces. Pequenina no porte físico mas grande em sua capacidade de alegrar o ambiente, tornando-se também uma espécie de ouvidora geral e conselheira. Um espírito evoluído, diriam alguns. Aspecto esse indispensável para a profissão que havia escolhido e era isso que ela frisava: o amor ao próximo, caso contrário não se vai saber cuidar nem comandar uma equipe de saúde.
Fato era que, depois do fim do curso e da festa da formatura, não mais haviam tido notícias uns dos outros. A universidade federal abrigava pessoas de diversas cidades e estados e não havia a facilidade das comunicações que se tem hoje.
Foram cuidar da própria vida, tentando se garantir na profissão, adquirindo famílias. A universidade e os amigos da turma ficaram na memória e se passaram 30 anos.
Por isso o susto ao receber aquela mensagem. 
- Onde ela estaria? Como descobriu meu telefone? 
Tinha descoberto o telefones de todos e, depois dessa primeira mensagem, Bia criou um grupo de bate-papo, onde acrescentou a turma toda: "Enfermagem UFRJ".
Foi aquele rebuliço que movimentou a rotina de todos.
- Como vai você?
- O que tem feito da vida?
- Tem filhos?
- Manda fotos!
- Por onde andam?
- Que surpresa agradável reencontrar vocês, não acredito!
Bia direcionou a energia do reencontro que estava sendo gerada e definiu: - Vamos nos reencontrar turma! E logo!
A querida amiga Lorena havia lhe pedido uma foto, pois a de perfil no WhatsApp estava desfocada.
- Parece foto antiga Bia, não consigo ver você direito.
Bia não mandou pois estava ligada em ver a turma toda junta. Depois de muitas conversas decidiu-se a cidade e o local do reencontro. Esse primeiro seria em um restaurante no Rio, que eles frequentavam na época da Faculdade e que ainda existia. Depois marcariam algo mais longo, um fim de semana juntos na serra ou na praia, quem sabe.
A curiosidade e a expectativa eram imensas e o grande dia chegou.
O coração de cada um batia aceleradamente à medida que chegavam e abraçavam os amigos da juventude. Todos colocaram adesivos com o nome e o apelido no peito para que não houvesse dúvidas, afinal 30 anos não são três meses. Até mesmo os três elementos masculinos do grupo, em uma turma predominante feminina, estavam lá: João Fernando, Nandinho; Hugo, o Galã e André Luiz, o Espírito, assim chamado por causa do nome e por ter umas visões, segundo ele.
Da classe de trinta e poucos, 23 apareceram. Nada mal.
É claro que Bia comandou as ações e um tema era recorrente nos comentários sobre ela: as saudades e a sua excelente forma física. Parecia ter 10 ou até mesmo 15 anos menos.
- Fez plástica Bia? Tomou formol?
- Não foi necessário amigos! Sorria ela, transbordando alegria.
Cada um falou dos caminhos percorridos da Faculdade até aquele momento. Trabalho, família, alegrias, perdas, sacrifícios. 
Selfies, troca de endereços, planos. Aquela tarde passou rápido. Entraram pela noite no restaurante, beliscando petiscos, bebendo umas cervejas, histórias ao pé do ouvido.
Apenas um detalhe diferente chamou atenção de André: um dos garçons, Carlinhos, era da época da turma, remanescente do período. Já tinham feito festa pra ele que ficou emocionado com a lembrança. No entanto André percebeu que eventualmente ele parava e ficava olhando para as conversas de alguns. Parecia admirado ou não estar entendendo bem. Coisas da idade, pensou André e seguiu aproveitando aqueles momentos mágicos. 
Depois de horas de confraternização e muitos projetos de não mais se afastarem, chegou a hora da despedida. Caberia à Bia fazer o discurso, da mesma forma que fizera a saudação de boas vindas.
Como nos velhos tempos suas palavras fluíam como música, embalando a todos com suas colocações otimistas e mensagens de carinho e profunda amizade por todos ali.
- Vocês não podem deixar que o tempo e a distância os separe. Cada um tem a sua história depois que terminamos a faculdade e elas são bem diferentes. Assim como somos diferentes e no entanto nos amávamos no curso. Esse amor voltou à tona agora e é uma experiência rica, uma oportunidade que não podemos desperdiçar. Trouxemos nossa juventude de volta, em uma idade madura. Que valorizemos isso, cada instante da vida, pois é isso que temos: o amor e o convívio com quem nos importa de verdade. 
E assim cada um seguiu para sua cidade, inebriados com os momentos felizes, quase não acreditando naquele reencontro.
Já no dia seguinte todos correram pro celular para comentar, festejar, postar fotos e dar os depoimentos acerca do encontro.
À medida que olhavam o Smartphone e abriam o grupo no aplicativo, uma surpresa chamou atenção de todos, um aviso postado automaticamente: "Bia saiu".


2
Laura se espantou.
- Deve ser problema no celular dela pessoal.
- Já tentei ligar pra Bia mas dá celular desligado ou fora de área, adiantou Nandinho.
- Vamos aguardar. Ele já reaparece. Enquanto isso vamos mandando as fotos galera, já foi agitando Julinha.
E assim se passaram os dias, os bate-papos sobre o reencontro, planos e nada de Bia.
- Gente, tem alguma coisa errada. Luísa ponteou. Todos tentam manter contato e ninguém consegue, ela mora onde mesmo?
- No interior do Rio. Bem, morava. Na época do curso eu fui lá uma vez, passei um final de semana. A mãe dela é maravilhosa, me chamava de Huguinho. Também se chama Beatriz.
- Será que ainda mora lá? No encontro ela falou para alguém onde estava morando ou trabalhando? Não consigo me lembrar do que ela disse no discurso dela.
Foi aqui que começou uma nova polêmica: todos haviam falado sobre os caminhos trilhados depois da Universidade, o que estavam fazendo atualmente, onde residiam. No entanto todos se lembravam das palavras de Bia, mas não havia ali nenhuma menção sobre ela, apenas sobre a importância da turma, da união.
- Muito mistério pro meu gosto, turma. No próximo final de semana vou lá. A cidade não é distante do Rio e acho que consigo acertar o bairro, apesar de passados tantos anos. Eu chego e vou perguntado. A cidade não é grande.
No sábado de manhã Hugo pegou a estrada no seu HB20 branco e em poucas horas estava na cidade que Bia residia nos velhos tempos.
Não foi mesmo difícil chegar ao bairro em que havia estado há 30 anos. A referência era uma antiga ponte de ferro que atravessava um rio sinuoso por entre a planície, com alguns morros ao longe.
Sabia que era uma daquelas ruas logo após a ponte. A atmosfera interiorana de receber bem as visitas o facilitaria na indicação do local correto.
Um bar é sempre uma referência, já era por volta de 13 horas de sábado, momento em que costumam aparecer os consumidores de cerveja e de bate-papos.
Hugo parou no primeiro que viu.
Em uma mesa quatro senhores estavam tirando o baralho da caixinha e dando os primeiros goles em uma Brahma bem gelada.
- Boa tarde amigos! Tudo bem? Poderiam me dar uma informação?
- Diga lá moço! Tá servido?
- Não obrigado. É que estou procurando a casa de uma amiga. Eu não venho aqui há muito tempo. O nome dela é Bia. Quer dizer, Beatriz. Uma baixinha, magra, morena, cabelos curtos lisos. É enfermeira. Eu fiz curso com ela.
- O moço deve estar procurando a mãe dela né? Olha, ela sai pouco de casa mas sempre morou no bairro. Dona Beatriz mora na primeira rua à direita. Ao lado da única mercearia que tem na rua. Aliás a mercearia é dela. Vive lá, atrás do balcão. O senhor vai encontrá-la. Ela estava meio doente mas já melhorou.
Bem, ótimo! Encontrando a mãe encontro a Bia. Hugo não se perdoava e ao mesmo tempo não entendia como, durante o encontro, ninguém pegou nenhuma informação sobre a pessoa mais importante da turma, a responsável por aquele mágico reencontro. Mas tudo bem, ele estava ali para resolver essa falha.
Entrou na rua indicada e logo estava em frente à pequena mercearia do bairro.
Logo viu a pequena senhora. Já idosa, cabelos brancos, serenamente olhando a TV que passava o noticiário vespertino. Não havia mais ninguém ali.
- Boa tarde! Dona Beatriz?
Ela lançou um olhar curioso para ele e em seguida um leve sorriso. Seu rosto tinha olhos de pálpebras levemente caídas e os sucos no rosto davam a dimensão não só da passagem do tempo, mas das lutas que havia passado. Difícil precisar sua idade mas mesmo nos tempos atuais, de velhos jovens, não havia ali mais nenhuma marca de uma distante juventude.
- Sim. Eu te conheço? Você não é do bairro. Deseja comprar alguma coisa?
- A senhora não deve se lembrar de mim. Me chamo Hugo e estive em sua casa há uns 30 anos. Amigo da escola de enfermagem da sua filha Bia.
Os olhos dela se abriram. E um sorriso triste apareceu nos lábios.
- Estou lembrando de você sim! Minha memória não anda muito bem para o que acontece hoje mas as coisas do passado eu lembro. Que surpresa te ver aqui.
- Pois é. Não anotamos o contato da Bia após o encontro e resolvi passar aqui.
- Não anotaram o contato há 30 anos? A juventude é assim mesmo, sorriu ela.
Ver ali um antigo amigo da filha a fez começar a falar dela, quase divagando, olhando para um ponto perdido na ar.
- Depois da formatura Bia seguiu o que era o sonho dela: ir trabalhar com os índios, lembra disso?
Sim, agora lembrava. Bia sempre falava disso. Tinha vontade de morar e prestar serviço aos povos das florestas, que ela amava.
- Nunca imaginei que ela acabaria seguindo esse caminho dona Beatriz, apesar de sempre falar isso.
- Assim que terminou o curso ela arrumou as malas. Já tinha feito contato com o pessoal da FUNAI de Mato Grosso. Foi pro Alto Xingu trabalhar com as nações indígenas.
- É mesmo? E ela se adaptou bem?
- Nossa! Era a vida dela. Apesar das dificuldades de comunicação, sempre nos falávamos por telefone. Ela ia até um posto da FUNAI e me ligava. Além das cartas é claro. Amava os índios e logo os índios passaram a amá-la também. Me falava das crianças, dos caciques, dos pajés. Teve um dia em que ela fez uma espécie de batismo. Se tornou uma pajé também, uma curadora.
- Que história. E ela nem falou disso no nosso encontro. Quando ela retornou de lá?
- Como assim retornou? Ela nunca voltou de lá!
- O quê? Bem, mais ela passa umas temporadas aqui não é? Senão não teria como encontrar o pessoal da turma.
- Não sei do que você está falando. Ela ficou lá durante 20 anos. Na única vez que esteve aqui falou muito de vocês, da saudade que tinha e dos planos de reencontrar a turma. Olhou fotos antigas de todos os amigos e amigas. Eu estive lá duas vezes. Na primeira conheci seu trabalho de "curandeira" como os índios a chamavam. Depois só retornei para acompanhar o seu final.
- Final? Como assim?
- Bia adquiriu uma doença na floresta. Até hoje não se sabe direito o que foi. Poderia ser malária, mas ela tinha se vacinado. Ficou um bom tempo com febre e foi definhando. Queríamos transferir ela para Cuiabá mas já era tarde.
A medida que ela ia contando Hugo foi ficando pálido e procurou um banco para se sentar.
- Está se sentindo mal moço? Não sabia disso?
- A senhora está dizendo que Bia morreu?
- Sim. Rezamos uma missa no sábado passado, dez anos de sua morte.
- Meu Deus, foi o dia do nosso reencontro. Bia estava lá!
- Como assim meu filho? Minha filha morreu há dez anos! Vocês se enganaram. Era outra pessoa.
Hugo pegou o celular, tocou no símbolo verde do WhatsApp e abriu o grupo.
- Pois veja a senhora mesmo essas fotos onde ela aparece, até estranhamos como ela parecia ter dez ou quinze anos a menos.
Dona Beatriz olhou as fotos, forçando a vista já cansada. Depois se voltou para Hugo que ainda não tinha recuperado a cor normal.
- Ela não está aí.
Hugo pegou o celular e ficou ainda mais assustado: ela realmente não aparecia em nenhuma foto. Apenas os demais amigos posando, sorrindo, conversando. Desapareceu também dos registros.
- Mas e esse número de celular que tenho anotado aqui? Ela falava conosco por esse número.
Mais uma vez Dona Beatriz olhou para Hugo estranhando aquela conversa toda. Achava que o rapaz não era bom da cabeça. Pegou o papel, desta vez colocou os óculos, e reconheceu aquele número.
- Eu tenho um daqueles celulares de idosos. O número era esse. Um dia a operadora desligou e me deu outro número, disse que aquele havia sido clonado, não sei como você conseguiu esse número.
Hugo baixou a cabeça e começou a chorar. Dona Beatriz o levou para o fundo da loja e ali ele contou toda a história para ela, que chorou junto com ele.
- Minha filha sonhava em reunir a turma. Ela veio de muito longe para rever vocês. Não tentemos entender, encontrar explicações ou duvidar. Vamos agradecer e rezar por ela e por todos vocês.
Ali mesmo eles se ajoelharam e se abraçaram, com saudades de Bia.


3
Outro encontro foi marcado. Hugo contou tudo e levou fotos de Bia no Xingu e até o seu atestado de óbito. Era difícil de acreditar naquilo tudo. Não tivessem vivenciado achariam tudo uma piada. Acataram o inexplicável com imensa emoção.
Hugo esteve naquele restaurante junto com André Luiz e conversou com o garçom Carlinhos: - Eu não entendia como vocês às vezes ficavam falando sozinhos. Eu olhava e não via ninguém!
O grupo no WhatsApp agora se chama "Amigos de Bia" e uma foto dela com um índio é o símbolo.
A turma está juntando dinheiro para fazer a primeira viagem juntos: vai ser pro Mato Grosso. Vão conhecer as tribos onde Bia trabalhou e o cemitério indígena onde ela foi enterrada.
Uma força maior os une agora, em um laço que consideram eterno.

Comentários

  1. Estou perplexa.
    Claro que tudo se mistura a uma história que conhecemos mas e um excelente conto.

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    1. É fato Lu. Tomei como base o reencontro da turma e avancei na ficção.Foi uma estratégia para a primeira história (quase toda) inventada.

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  2. Marcos, porque não divulgou esse texto? Descobri porque sempre dou uma olhada aqui.
    Parabéns! Está entrando na area da ficção também. Um dos melhores que ja escreveu. Bjs

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    1. Isso mesmo Maria Inês. Optei por não divulgar muito pois trata-se de uma area (ficção) onde ainda não estou seguro. Obrigado!

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