Minha vida e o pato


Não, não é sobre o pato amarelo da FIESP. É outra tragicomédia real.
Até os 12 anos, aproximadamente, morei na região que era chamada Zona Rural do Rio. Sim, existia. Com vacas e bois eventualmente passando na rua de barro com esgoto à céu aberto.
Não existe mais como era. Hoje chama-se Zona Oeste. Área norte, imagino eu, pois a sul é a Barra.
Casa simples mas com quintal grande, árvores frutíferas, galinheiro e chiqueiro.
Em frente à minha casa tinha um imenso sítio "sem dono", tudo aberto, com riacho, campo de futebol de várzea, pés de goiaba, araçá (que é uma mini-goiaba), manga, jamelão.
Criávamos também patos e patas (brevemente entenderão por que faço essa distinção), com um pequeno laguinho de cimento que meu pai fez. No entanto era pequeno e eventualmente eu era incumbido de leva-los para nadar no riacho.
Dentre os patos havia o "todo-poderoso", grande, top de linha. O chefão da tribo. Não sei se hoje em dia os patos são assim, mas lá em casa era. Eu o chamava de Dom Patão. Tinha uns nove anos, acho. Eu tinha nove anos, não Dom Patão que parecia ser um senhor de seus 40 ou 50 anos (estou tentando converter para uma perspectiva humana). De todos era o que mais estimávamos. Sim, eram de estimação. Ninguém comia pato (ou pata) em casa.
Não sei bem porque, teve uma época que só tinha ele de macho. Ficou sendo dono de um harém, pois tinha uma meia dúzia de patas que ele comandava com mão de ferro. Ou patas de ferro melhor dizendo.
Pois bem, certa feita ele descobriu uma pata de uma vizinha que morava a uns cem metros de minha casa e do riacho. Começou a se engraçar com ela e eu não conseguia entender porque. Tendo ele seis à disposição, foi se apaixonar pela vizinha. Ou melhor, pela pata da vizinha. Bem vocês entenderam.
Isso aumentou meu estresse na hora de levar a turma pro riacho. Ele queria abandonar as patas dele lá e sair de fininho pela rua pra chegar lá longe, na outra pata. E meu pai temia perde-lo e me comunicou a necessidade de vigilância redobrada: eu não podia permitir que ele cometesse aquele ato transloucado de paixão irracional.
O problema era que, chegando ao riacho, eles se separavam, era difícil ter uma visão completa. Eu corria o risco de perdê-lo de vista. Acho que até entendia a posição emocional do amigo pato, tinha pena dele, mas nem tanto, pois - pelo menos no que tange à sua vida sexual com as seis patas - ele não estava mal.
Tive então uma brilhante ideia. Havia uma mangueira próxima do local que me forneceria uma visão ampla, facilitando a vigilância, desde que eu subisse no galho mais alto. Isso não era problema. Nove anos, leve, ágil e acostumado a escalar grandes árvores.
Em poucos minutos eu já estava no galho mais alto. Não me lembro a que distancia do chão, mas não era baixo, talvez equivalente ao topo de um prédio de três andares. A visão era mesmo geral.
Naquele dia ele estava calmo, acho que percebeu a minha estratégia e resolveu esperar uma oportunidade melhor.
Portanto a coisa andava até meio parada. E criança de nove anos é inquieta. Eu olhei para o ponto de união do galho com o tronco e me perguntei se ele resistiria se eu começasse a fazer um movimento de balanço, uma brincadeira contra o tédio. Concluí que sim e iniciei uma espécie de pêndulo. Não durou muito. Só escutei o "crac". Despenquei lá de cima. Bati de costas no chão. Isso eu só lembrei depois. Quando dei por mim a vizinhaça toda estava ao meu redor, meio desesperada. Eu sem entender o que havia acontecido.
Mas estava sem maiores ferimentos, apenas com dor no tórax. Meu pai e minha mãe resolveram me colocar no trem para a Central até o Hospital dos Servidores do Estado, que eu tinha direito por seu meu pai funcionário público federal do Ministério da Saúde.
Depois dos exames de praxe e nada mais grave sendo constatado, me deixaram 24 horas internado em observação.
Quando retornei fui me lembrando aos poucos. Havia muitos galhos mais finos abaixo daquele que eu estava. Eles foram se quebrando à medida que eu caía, amenizando o impacto que poderia ter sido fatal mas que resultou apenas em um desmaio e leves escoriações.
Concluíram os religiosos vizinhos que meus anjos da guarda me salvaram. E que, através deles, a mão de Deus me segurou.
Quanto ao Dom Patão, soube depois que ele se aproveitou de toda confusão e consumou seu ato com aquela que seria sua sétima conquista. Assim, como a história do rei Henrique VIII e suas seis esposas, ele se tornaria lendário. Pelo menos para mim.
Depois disso não durou muito. Teve um mal súbito à noite e amanheceu morto. Comoção da família e aparentemente das seis patas que já o haviam perdoado da escapulida.
Quanto à sétima pata (aquela da vizinha, pivô de toda a história), tornou-se amiga de suas rivais: pouco tempo depois apareceu lá em casa pra nadar com as novas companheiras de infortúnio saudoso.
Quando nos mudamos elas ficaram morando todas juntas.
Em retrospecto pseudo analítico-filosófico, me pergunto se não seria Dom Patão um ídolo. Mas aí me lembro da queda fatídica e penso que não. Mas creio que ele tinha consciência que estava com os dias contados, por isso a ânsia de perpetrar sua derradeira aventura amorosa.
Possível também que tenha morrido tranquilo, sabendo que, ultrapassada a barreira dessa existência, encontraria não apenas sete patas, mas pelo menos uma dúzia no seu novo harém celestial (dos patos).
Atualmente eu - ainda que muito raramente - mantenho a coragem de subir em árvores. Mas, nesses esparsos momentos, meus cuidados se multiplicam. Não acredito que os anjos de guarda ou a mão de Deus tenham paciência de cuidar de um sujeito de quase sessenta anos que não aprendeu a lição e insista em repetir o erro. Até porque acho difícil ter um harém do outro lado.

Comentários

  1. E aí xará? Isso aconteceu mesmo ou é criação sua? De qualquer forma é uma história muito bem contada, bem ao seu estilo! Ri muito!

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  2. Não é invenção. Aconteceu mesmo, como está narrado. É claro que entrou a parcela do contador de histórias humorístico. Mas quase que parto dessa para melhor, ainda criança. Antes do pato!

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  3. KKKKKKKKKKKKKKK.
    Amei!!
    Escapou por pouco! Ainda bem.
    Bj

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  4. Como se lembrou disso agora?

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  5. Não sei.
    Há pouco me lembrei que ontem completaram 13 anos de falecimento de meu pai. E foi ontem que lembrei dessa história...

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  6. Hahaha!!Marcos, que história hilária! Acho que seu desejo mesmo era ser o D. Patão, já pensou ter um harém de seis,ops,sete " patas"? Você iria adorar né? ah se não!! E a queda da árvore foi um livramento de Deus e do seu anjo da guarda sim! Bjs.

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  7. Hahaha... Que nada! Mas Dom Patão sabia das coisas!
    Foi uma história que marcou minha infância. Graças à Deus estou aqui pra contar. Bjs.

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