O Deserto dos Tártaros
Virei a chave do carro e o som ligou automaticamente, se conectando com o celular que estava no modo bluetooth, que por sua vez reconheceu a conexão e abriu o Spotify que selecionou minha última playlist ouvida, Classic New Age Music. Mas ao dirigir queria outro fundo musical e escolhi a lista Classic Rock (fiz várias com o nome começando com o termo Classic que, em outras palavras, significa "coisa antiga", lá do século passado; tenho uma leve desconfiança que isso tem um significado, se é que me entendem). Trânsito caótico das 17:30 h em ruas periféricas ao centro da cidade. Ainda bem que estava em companhia das velhas canções. Só não dava para ler um livro no carro, mesmo parado no engarrafamento, embora hoje já existam audiobooks, o que não é a mesma coisa mas é aplicável em algumas situações.
"Quatro anos haviam passado desde então, uma respeitável fração da vida, e nada, absolutamente nada acontecera que pudesse justificar tantas esperanças. Os dias haviam decorrido um após outro".
Falando no tema pergunto aos estimados amigos: vocês tem lido ultimamente? Falo de livros. Já sei que a resposta é não, com algumas exceções, óbvio. Fato. É que não tem jeito. A pessoa trabalha oito horas ou mais por dia. Se não for CLT piorou. E tem de se deslocar nesse trânsito caótico. Se o trabalho é remoto, tem de ficar logado direto. Esses dias li que um banco demitiu dezenas de colaboradores por não estarem a quantidade de horas suficientes digitando. Sacanagem capitalista. Como de hábito. Aí tem os momentos livres em que você olha o e-mail não corporativo, as mensagens particulares no WhatsApp comum porque tem o Business também. E dá uma percorrida no feed do Instagram. E as últimas notícias no Google News. Se o momento vital permite uma maior quantidade de horas livres, o apelo dos streamings com milhões de séries e filmes imperdíveis acabam sendo mais atrativos do que as páginas e o book fica esquecido on the table mesmo. Aí ficamos divididos no tempo e no espaço.
"Até então ele passara pela despreocupada idade da primeira juventude, uma estrada que na meninice parece infinita, onde os anos escoam lentos e com passo leve, tanto que ninguém nota a sua passagem."
Um exemplo típico do que falo é este exato momento: enquanto escrevo estas mal traçadas linhas (acho que estão péssimas mesmo), acompanho online ao mesmo tempo um seminário a milhas e milhas daqui. Ou seja nem consigo acompanhar bem o evento nem escrevo algo de um nível minimamente aceitável (sorry). Sei que esse depoimento se encaixa perfeitamente na rotina da maioria. De qualquer forma, em que pese tantos contras ao hábito de leitura que me acompanha desde sempre, tento driblar e não perder de vez a conexão literária.
"Dentre tantas coisas bonitas no mundo, ele teimava em desejar esse improvável palacete junto ao mar, as músicas, a dissipação das horas, a espera da manhã. Ainda que tolo, isso parecia exprimir do modo mais intenso aquela paz que perdera. Há algum tempo, de fato, uma ansiedade, que ele não conseguia entender, o perseguia sem descanso: a impressão de que nada daria tempo, de que alguma coisa de importante aconteceria e o pegaria de surpresa".
Esta semana, procurando na web uma receita culinária, me deparei acidentalmente com o termo "tártaro", um molho de origem francesa utilizado para acompanhar carnes e também macarrão. Esteve na moda lá pelos anos 80, acho. Bife ao Molho Tártaro, Penne ao Molho Tártaro, etc. Bem, não entrei nos detalhes da mesma mas fiquei tentando lembrar de um livro que tinha esse termo, referente aos povos pertencentes a grupos étnicos da Ásia Central. E agora para lembrar...? Memória que anda falhando. Efeito colateral dessa correria nossa de cada dia e de um fenômeno transcendental chamado idade ou DNA: Data de Nascimento Antiga. Me recusei a pedir ajuda aos universitários da Google University e fiquei rodando aquilo na mente por algumas horas, chegando a níveis de alta irritabilidade com a falta de lembrança. Mas consegui! Trata-se de "O Deserto dos Tártaros" (Editora Nova Fronteira, 174 páginas), escrito pelo italiano Dino Buzzati em 1940. Eu sabia que tinha esse livro. Comprei-o há séculos e nunca tinha lido. Mais um das dezenas descansando sem manuseio em berço esplêndido em alguma das estantes lotadas. Quem disse que eu consegui achar? Tem uma máxima que diz que se você tem uma coisa e não consegue achá-la em cinco minutos então você não tem. Desisti de achar, é claro. Provavelmente emprestei e nunca mais devolveram. Sem recriminações. Provavelmente eu também já peguei livro emprestado e não devolvi. E provavelmente também não li.
"O tempo, inexplicavelmente, pusera-se a correr cada vez com maior velocidade, engolindo os dias uns após os outros. Bastava olhar ao redor que a noite já caía, o sol dava volta por baixo e reaparecia do outro lado para iluminar o mundo pleno de neve. Os outros, os companheiros, pareciam não dar conta disso".
Não encontrando e disposto a finalmente ler (lembrem-se do molho) resolvi comprar um novo exemplar, se é que estava em catálogo. Estava, mas a um preço salgado pois não tinha chegado ainda a Black Friday, que costuma funcionar bem nos descontos de livros. Optei então pela versão digital no Kindle. Pelo que me lembro comprei esse livro apenas pelo título. Não me perguntem porque essa percepção. Na época não existia essa facilidade de acesso às sinopses. Já de posse me surpreendi com o autor da pintura da capa: Giorgio De Chirico. Tudo que conhecia até então deste italiano eram suas criações pictóricas arquitetônicas quase sem nenhuma figura. Desta vez recorri ao Gemini (assistente de IA do Google) que me informou ser ele precursor da Pintura Metafísica, considerada semente do Surrealismo, ainda no século XIX: "Os elementos arquitetônicos mobilizados nas composições - colunas, torres, praças, monumentos neoclássicos, chaminés de fábricas etc. - constroem, paradoxalmente, espaços vazios e misteriosos. As figuras humanas, quando presentes, carregam consigo forte sentimento de solidão, mistério e silêncio". Concordo. E isso sempre me atraiu nas obras de De Chirico (como é que eu escrevo isso sem soar estranho?). Vejo nele semelhança com o americano Edward Hopper. A diferença é que este sempre incluía a figura humana solitária: "suas pinturas ressoam com o público por explorarem a condição humana universal de solidão, alienação, isolamento e o silêncio da vida contemporânea". Caso estejam estranhando - com razão - minha incursão por este mundo das pinturas, leiam a crônica O Pseudo Colecionador publicada em agosto de 2020 neste mesmo blog. Mas porque diabos De Chirico fez essa pintura figurativa, com traços Impressionistas, destes dois soldados montados? Pois descobri que ele simplesmente renegou sua fase Metafísica e adotou uma pintura acadêmica a partir de 1930. Fez o caminho contrário de nomes como Dali e Picasso. A ironia é que ele hoje é lembrado apenas por essa fase inicial de sua carreira, considerada visionária. Acabou retornando à essa temática nos anos 60, vindo a falecer em 1978 aos 90 anos.
"Justamente naquela época ele deu-se conta de que os homens, ainda que possam se querer bem, permanecem sempre distantes; que, se alguém sofre, a dor é totalmente sua, ninguém mais pode tomar para si uma mínima parte dela; que, se alguém sofre, os outros não vão sofrer por isso, ainda que o amor seja grande, é isso que causa a solidão da vida".
Eis que, passadas umas três décadas, finalmente li "O Deserto dos Tártaros". Só depois disso fui dar uma olhada na sinopse da Editora Nova Fronteira, que reproduzo parcialmente, evitando maiores spoilers: "O Deserto dos Tártaros é uma jornada pela complexidade da alma humana. Nesta obra-prima de Dino Buzzati, você será levado a uma atmosfera carregada de expectativa e reflexão sobre a vida e o tempo que passa. A história do jovem tenente Giovanni Drogo, destinado a um posto remoto no forte Bastiani, é uma metáfora arrebatadora da espera e da busca por significado na existência. Você irá se identificar com as emoções de Drogo, sua alegria inicial, o senso de dever e, eventualmente, a melancolia que acompanha a espera por um inimigo que parece nunca chegar. Este livro é um convite à reflexão sobre como a vida pode nos surpreender, nos confrontando com a passagem do tempo e a busca por propósito". Ok, pode soar não muito animador, mas essas sensações (com alguns trechos reproduzidas nesta crônica) pode vir para qualquer pessoa em qualquer momento da vida. De qualquer forma fica claro que reservar um tempo para um bom livro pode ser uma saída para criar momentos de autoproteção contra a ansiedade de nossos tempos.
“Não é sobre a vida militar que fala o livro, mas sobre a vida de todos nós. Fala da vida como uma aposta na imobilidade. Se não fizermos nada além de aceitar as coisas como são, um dia algo virá para redimir nosso pobre cotidiano, algo notável e brilhante que a vida nos reserva mais para a frente. Embora escrito oitenta anos atrás, o livro parece endereçar-se diretamente ao século XXI e nos atinge profundamente.” Trecho do prefácio do cineasta Ugo Giorgetti.
Por outro lado e voltando ao Classic Rock via bluetooth no carro, me pergunto se o personagem do livro de Dino Buzzati teria feito as mesmas escolhas ou os mesmos questionamentos com tantas opções e correria no caos urbano, suburbano e até rural dos dias de hoje. O mesmo para as pinturas de Edward Hopper e de De Chirico (eita!). Quanto ao Molho Tártaro, é fácil obter a receita na web, caso tenham se interessado. Até porque acho que não existem mais livros impressos de receitas. Tá tudo digitalizado!
"O sol brilhava límpido e benévolo para todos, um ar revigorante descia do vale, os prados exalavam um bom perfume, cantos dos pássaros acompanhavam a música do riacho. Um dia feliz, pensou."



Obrigado pela dica de livro e parabéns pela crônica. Quando tu fala em caos urbano, suburbano e rural, acho que tem um disco com esse título mas agora eu que não to lembrando. Sabe qual?
ResponderExcluirObrigado pelo comentário Alice. O disco a que se refere é "Confusão Urbana, Suburbana e Rural". Eu também me lembrei dele quando escrevi esse termo. É do saxofonista Paulo Moura, mais um daqueles músicos mais conhecidos no exterior do que no Brasil. A incrível capa é do também genial Elifas Andreato. O álbum foi produzido por Martinho da Vila. Lançado em 1976. Teve uma edição em CD em 1989. Atualmente é difícil de encontrar. Mas tem nos streamings de música.
ExcluirIsso mesmo! Já achei no spotify. Obrigado!
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